quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Depoimentos sobre Chico Buarque - 002

Walter Silva

Como conheci Chico – 1976

Do particular para o geral, dizem, está a melhor maneira de comunicação. “Pinte a sua aldeia e você será universal” (Tolstoi). Essa, talvez, seja a melhor forma para falar sobre o que sei, penso e acho sobre Chico Buarque de Hollanda, que no meu jornal não deixam sair com dois “l”. Naquela época era “anticomercial” tocar bossa-nova em rádio - aliás por isso mesmo fomos afastados do programa radiofônico de maior audiência em todo o Brasil, “O pick-up do picapau”, que era levado pela Rádio Bandeirantes. Não nos restava outra alternativa a não ser o teatro.

Como os meninos do Centro Acadêmico XI de Agosto já haviam realizado com enorme sucesso “O fino da bossa”, com o qual também colaboramos, a idéia só podia mesmo nos animar. Assim, sem nunca ter entrado na coxia de um teatro, lá fomos nós alugar o Paramount para espetáculos de música brasileira moderna. Apoiados na idéia de usar os centros acadêmicos para divulgar e patrocinar os mesmos, já marcamos para o dia 16 de outubro de 1964 o primeiro deles, que se chamou Mens Sana in Corpore Samba, claro que promovido pelos alunos da Escola de Educação Física do DEFE (Departamento de Educação Física e Esportes). Na primeira parte, amadores com os quais já havíamos tido contato antes em shows beneficentes (como o que ajudamos a produzir para a Associação de Moças e que foi realizado no próprio Paramount, do qual participaram, entre outros, Elis Regina e Silvio César, que faziam uma temporada na boate Djalma’s, na Praça Roosevelt). Esses amadores eram Toquinho, Taiguara, Ivette, Bossa Jazz Trio, Maria Lúcia, César Roldão Vieira e Solano Ribeiro, que na época cantava num conjunto de rock chamado “The Avalons”, mas que na última hora acabou não indo. Na segunda parte participaram Silvinha Telles e conjunto de Roberto Menescal.

Ajudavam a gente na elaboração do espetáculo, além dos estudantes e pessoas de sua família, dois rapazes que eram verdadeiros apaixonados pela coisa. Um deles, Homero Honório Ferreira Filho, é hoje cunhado de Chico Buarque, casado com sua irmã Cristina; o outro, Antônio Márcio Fernandes Costa - ambos de São José do Rio Preto e estudantes universitários. Manoel Barembein, que era divulgador de discos e estudioso de som, cuidava da parte técnica dos shows. Eram os três da mesma idade e transavam muito o barzinho em frente ao Mackenzie, onde se realizavam, na hora do almoço, os conhecidos encontros de samba, chamados “Sambafo”, dos quais fazia parte um tal de “Carioca” - Chico Buarque. Um dia, antes do espetáculo já citado, chega-se a nós o Homerinho e diz:

- Rapaz, você precisa ouvir o “Carioca”, um cara que canta no “Sambafo” do Mackenzie. Ele estuda na FAU e é superengraçado.

- Manda o “Carioca” procurar a gente aqui no teatro, dissemos nós.

E já no dia seguinte estava lá o moço com ar de tímido, mas com uma cara de malandro encoberto que dizia tudo sobre ele e suas intenções. Devia ter, no máximo, uns 19 anos. Tocava muito mal violão e tanto melódica e como harmonicamente nada tinha que ver com o que nos propúnhamos. Além de segurar o bordão com o polegar da mão esquerda, não tinha nada de atraente como ritmista e melodista. Em compensação suas letras eram de uma força incrível e apesar dela, ou por isso mesmo, sua cara de sonso comunicava muito. Começou a freqüentar a casa da gente como os demais e num curto espaço de tempo já era líder da turma. Todos queriam cantar suas composições. Não raro aparecia às 10 horas da manhã, com aquela cara de quem não dormiu nada e bebeu muito. Vinha num Aero-Willys bordô, daqueles bem desbotados, e ia entrando com decisão e pontaria. O barzinho era seu alvo, depois o sofá e em seguida o violão. Cantava, tocava e pouco falava ou discutia. Marcava sempre sua presença por tiradas de muito humor e inteligência e de imediato sabia-se que estava acima dos demais que com ele começavam. Tinha uma resposta irônica para tudo e a cada instante, denotando uma experiência muito grande para seus poucos quase vinte anos. Entrosava-se muito com Maria Lúcia, que era a mais extrovertida do grupo e que adorava cantar suas músicas. Um dia, num show que levamos na Hebraica, Chico e Maria Lúcia cantaram juntos “Primavera”, de Carlos Lyra e Vinícius, da peça “Pobre menina rica”.

Já que formavam um par jovem muito bonito, usamos o aspecto físico dos dois e os colocamos cada um numa extremidade do palco, sentados no chão e com as pernas balançando para fora, de frente para a platéia. O número saiu lindo e os aplausos maiores foram para os dois, embora naquela noite homenageássemos outro autor novo que conosco caminhava, o Adilson Godoy.

A idéia de lançar todas ou o maior número possível de músicas de um só autor dos jovens deu certo naquela noite e animou-nos a fazer o mesmo com Chico já no show seguinte, cujo nome era 1ª Denti-Samba e, como o trocadilho infame já denuncia, era dos alunos da Faculdade de Odontologia. Durante toda a primeira parte, os amadores só cantaram músicas de Chico Buarque, algumas das quais jamais regravadas ou lançadas por ele, como, por exemplo, “Malandro quando morre”. “Malandro quando morre vira samba / mulher vira uma flor no céu”, que foi muito bem interpretada por Maria Lúcia. O show dessa primeira parte, escrito por nós, chamava-se Sambairro e defendia o direito de todos serem bairristas. “Some-se depois esse bairrismo todo e teremos um imenso universalismo.” Na segunda parte do espetáculo, explodia Elis Regina com o Copa-Trio (Salvador, Dom Um Romão e Gusmão). Casa supercheia e paletós jogados para cima numa histérica maneira de aplaudir, não mais vista nos últimos onze anos.

Chico cantou quatro músicas e seus colegas amadores desfilaram quase todo o repertório do “Carioca”. O maior sucesso da noite foi “Marcha para um dia de sol”, que nós sugerimos que se transformasse em “João XXIII”. “Eu quero ver um dia / numa só canção / o pobre e o rico andando mão e mão / que nada falte, que nada sobre / o pão do rico / o pão do pobre...” A platéia, toda feita de jovens que já sabiam do Chico, cantou junto e quase vira carnaval. Ao final do espetáculo, o compositor e psiquiatra Roberto Freire enxugava as lágrimas e dizia:

- Menino, algo está começando. Algo está começando... E estava mesmo. Começava ali uma das mais importantes carreiras artísticas de toda a história de nossa música popular. Começava ali o ciclo Chico Buarque.

No mês seguinte, novembro de 1964, estudantes de um ginásio de Campinas marcaram um show para sua cidade, realizado no Cine Ouro Verde. Seria no dia 23 de dezembro, dois dias, portanto, antes do Natal. Para participar desse show, os amadores também seriam pagos. Cada um receberia a importância de 50 cruzeiros, que, aliás, não foi paga para a maioria, uma vez que os meninos de Campinas deram um tremendo cano. Só uma parte da turma recebeu. Para alguns profissionais tivemos que dar um cheque, coisa que não agradou o pessoal. Houve até um que, por não receber no dia marcado, levou pro protesto. Tudo bem. Os profissionais que participaram do espetáculo de Campinas foram Pedrinho Mattar, Oscar Castro Neves, Alaíde Costa, Paulinho Nogueira, entre outros. Mas foi Chico Buarque quem chamou a atenção da maioria das pessoas presentes. Contente com o primeiro cachê resolveu, junto com seu inseparável amigo “Barão”, ir passar o Natal em Borborema, pequenina cidade próxima a São Carlos. Aproveitou o táxi que nos levaria a Rio Preto e parou na Praça de São Carlos, junto com “Barão”, tocando violão, cantando e bebendo tudo. Chico sempre teve um só compromisso: consigo mesmo. Era de uma independência total e dono de seus atos. Quem quisesse se enturmar, que se enturmasse com ele, pois ele não se enturmava com ninguém.

Veio o dia em que Chico gravou seu primeiro disco. A RGE, que cedia todo o seu equipamento de som para os nossos shows no Paramount, resolveu atender ao nosso pedido mais do que insistente para que se gravasse com o pessoal novo que estava sendo lançado. Por muito favor José Scatena, dono da gravadora, achou uma hora livre e cedeu-nos o estúdio “B” de sua gravadora. O “A” já era ruim, imaginem o “B”. Uma sala diminuta, onde havia uma mesinha para locutor, uma cadeira e um microfone. Só isso. Somando tudo não dava mais de 4 metros quadrados. Com o pé sobre a cadeira e tocando violão, assim foi feita a primeira gravação de Chico Buarque: “Pedro pedreiro”, um dos seus muitos sucessos nos shows do Paramount.

Depois veio o festival da Record e com ele “A banda”. Nessa ocasião uma importante passagem: o 1° lugar ficara com o Chico, mas ele exigiu que fosse dividido com o Vandré e sua “Disparada”. No dia da apresentação da “Banda”, às 5 da tarde, mais ou menos, Chico assinou contrato de edição de sua música com a Fermata. Testemunhas, Manoel Barembein e Glorinha Moreira. A edição de Enrique Lebendiger ganhou seu maior sucesso até hoje.
Antes desse dia, levamos Chico e César Roldão Vieira, a pedido de Lebendiger, para editar suas músicas naquela editora. Como ambos estavam “duros”, Lebendiger deu a cada um 250 cruzeiros. Eles, que pensavam que uns 30 estariam muito bem, saíram doidos com tanto dinheiro que acabavam de ganhar como adiantamento de seus futuros direitos. Também contente, Lebendiger fez-nos sócios de uma editora que recebeu o nome de M.B.M. (Música Brasileira Moderna). Como nunca entendemos do assunto, duros, vendemos nossa parte ao sócio-editor meses depois por 10 milhões (antigos). Foi uma festa. Antes tivéssemos ouvido os conselhos de Chico de Assis e de José Roy, que, na porta da editora nos pediam para desfazer o negócio, uma vez que só no carnaval a gravação de “A banda” nos daria mais de trezentos milhões (antigos). Não acreditamos e ainda fomos vítima de uma intriga feita, não se sabe por quem, que nos separou de Chico Buarque por sete anos. Nunca mais nos falamos, até que um dia, ou melhor, numa noite, depois de um show pelo circuito universitário no Tuca, em pleno Restaurante Gigetto, sentimos um tapa nas costas. Era ele que nos cumprimentava e nos abraçava. E ambos, sentimentalóides como todo brasileiro, nos pusemos a chorar, sem perguntas, sem respostas. Acompanhamos suas atuações à distância. Sentimos o quanto ele evoluiu e fez evoluir nossa música popular. O quanto de importante ele representa e representou para a formação de nossa cultura popular urbana. Chico Buarque, o “Carioca” da FAU, é universal porque soube cantar e pintar sua aldeia. Tolstoi estava certo.

Nenhum comentário: