Yan Michalski
No dia 17 de dezembro de 1965, sentado no Teatro Maison de France, passei por uma das primeiras emoções inesquecíveis da minha incipiente carreira de critico teatral. Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, na montagem do TUCA paulista, trazia um poderoso sopro de renovação para o teatro brasileiro. Sopro de poesia e, ao mesmo tempo, de inconformismo social; de brasilidade e de universalidade; de desespero e de fé. Sopro, também, de uma singular musicalidade, que escapava dos limites das lindas canções e irradiava-se por todos os setores do espetáculo. Ele devia-se à colaboração, que na minha critica adjetivei de “inspiradíssima” e “maravilhosa”, de um estudante de Arquitetura, ainda não Chico Buarque, mas Francisco Buarque de Hollanda, 19 anos de idade. Ninguém no Rio tinha ouvido falar nele; ninguém iria, nunca mais, esquecer seu nome.
No dia 17 de dezembro de 1965, sentado no Teatro Maison de France, passei por uma das primeiras emoções inesquecíveis da minha incipiente carreira de critico teatral. Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, na montagem do TUCA paulista, trazia um poderoso sopro de renovação para o teatro brasileiro. Sopro de poesia e, ao mesmo tempo, de inconformismo social; de brasilidade e de universalidade; de desespero e de fé. Sopro, também, de uma singular musicalidade, que escapava dos limites das lindas canções e irradiava-se por todos os setores do espetáculo. Ele devia-se à colaboração, que na minha critica adjetivei de “inspiradíssima” e “maravilhosa”, de um estudante de Arquitetura, ainda não Chico Buarque, mas Francisco Buarque de Hollanda, 19 anos de idade. Ninguém no Rio tinha ouvido falar nele; ninguém iria, nunca mais, esquecer seu nome.
Algum tempo depois, ele procurou-me, com toda a sua na época proverbial timidez e um texto debaixo do braço: sua obra de estréia como autor teatral, Roda-viva, sobre a qual ele queria que eu lhe desse uns palpites. Não sei mais o que achei e do que comentei com ele, mas lembro-me do susto que levei quando soube mais tarde que Roda-viva ia ser dirigida por José Celso Martinez Corrêa, então no auge do seu genial delírio tropicalista: a tocante mas ingênua fábula de Chico não me parecia combinar com a fúria iconoclasta de Zé Celso. De fato, o próprio diretor descreveria depois metaforicamente a maneira como se apropriou do texto e o transformou num veículo de contundente agressividade cênica: “Eu sugeri que o cartaz da peça fosse o Chico Buarque num açougue ou os olhos verdes de Chico boiando como dois ovos numa posta de fígado cru, pois foi assim que vi o Chico de Roda-viva.” No resultado mostrado em cena, a violência da encenação sobrepunha-se esmagadoramente à matéria-prima literária, a tal ponto que quase ninguém se lembrou de discutir o texto, enquanto a encenação desencadeou uma inédita onda de polêmicas, coroada por um brutal atentado que o espetáculo sofreu em São Paulo. O autor teatral Chico Buarque, aliás, fez questão de aprovar e apoiar a livre criação diretorial de Zé Celso - nascia abafado por um vendaval de invenção cênica que ofuscava a sua peça. Mas o compositor e letrista Chico Buarque criava para Roda-viva algumas canções antológicas, que permaneceriam até hoje na ponta da língua de milhares de pessoas.
O autor teatral Chico Buarque, agora em parceria com Ruy Guerra, voltaria a ser esmagado na sua tentativa seguinte; só que por uma força diametralmente aposta à delirante liberdade criadora de Zé Celso. Quem esmagou a segunda tentativa dramatúrgica de Chico, Calabar, foi a Censura, proibindo o seu lançamento às vésperas da estréia. Lembro-me de que nós, os jornalistas, fomos até impedidos de sequer mencionar o título da peça em qualquer noticiário. Mas, por um desses surrealistas paradoxos característicos da época, o disco com as músicas foi autorizado a circular, embora sem o título Calabar na capa; e logo as canções adquiriram uma existência independente da peça para a qual foram escritas, e passaram a fazer parte, como tantas outras de Chico, do nosso subconsciente coletivo. Infelizmente, quando alguns anos mais tarde Calabar pôde finalmente ser montado em São Paulo, o momento mais oportuno para a sua apresentação já havia passado, e o seu impacto não foi o mesmo que teria sido se a peça tivesse sido vista dentro do contexto histórico a partir do qual e para o qual fora escrita.
Bem diferente foi a sorte de Gota d’água que, lançada em 1975, integrou, junto com Um grito parado no ar, O último carro e alguns outros espetáculos, um conjunto das primeiras luzinhas no fim do túnel: já se tornava de novo possível colocar no palco, por um prisma crítico, o Brasil no qual estávamos vivendo. Por outro lado, contrariamente a Roda-viva e Calabar, Gota d’água não era um musical, mas um drama poético em versos, com algumas canções. Pela primeira vez poderíamos avaliar as possibilidades de Chico como dramaturgo, sem ficarmos condicionados pela admiração que todos temos pela sua produção como letrista e compositor. O resultado não surpreendeu: o texto foi saudado como uma obra-prima da dramaturgia brasileira, e até hoje nada perdeu da sua densidade. Trabalhando mais uma vez em parceria, agora com Paulo Pontes, ambos baseando-se numa idéia original de Oduvaldo Vianna Filho, Chico confirmava aqui, deslumbrantemente, os seus dons de poeta e a sua sintonia com o lirismo da alma brasileira.
Em A ópera do malandro, Chico, em 1978, dispensa parceiros e assume de novo sozinho a responsabilidade da matéria dramatúrgica e musical. Ou melhor, enfrenta corajosamente o peso de suas parcerias indiretas: a de Brecht, em cuja Ópera dos três vinténs assumidamente se inspirou, e a de John Gay, em cuja Ópera dos mendigos Brecht se inspirara. A Ópera do malandro tem um volume de pesquisa histórica, uma qualidade literária da escrita e uma idéia-base do enredo à altura do melhor Chico; mas a inevitável comparação com a obra-prima de Brecht-Weill resultou-lhe incômoda; e o espetáculo foi algo desservido por uma montagem não muito feliz. Mas, mais uma vez, várias canções escritas para a peça levantaram um vôo autônomo e foram pousar no coração da gente.
Talvez seja esta magistral capacidade que faz de Chico Buarque, sem sombra de dúvida, uma das mais indispensáveis personalidades do Brasil de hoje, uma das poucas que fazem parte diária da nossa intimidade, sem que seja necessário conhecê-las pessoalmente.