sábado, 5 de janeiro de 2008

Edu Lobo dá depoimento sobre Tom Jobim



Fiz o vídeo ontem de madrugada. Não tem como não gostar.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

MEU VÍCIO

Preciso admitir que sou viciada. E pior, há muitos anos. Comecei cedo recebendo de presente de meus parentes mais chegados os primeiros livros da minha vida. Aí, não teve mais jeito, tornei-me uma leitora compulsiva pro resto da vida.
Gosto de quase todo tipo de livros, todo tipo de literatura, mas tenho um carinho antigo por livros policiais, que são considerados de segunda classe. Eu discordo. Encontrei um autor italiano, Andréa Camilleri, que é uma delicia de se ler. O primeiro título de Camilleri que me chegou às mãos foi a Forma Da Água, uma história policial, cujo protagonista é o investigador Salvo Montalbano, personagem de diversos outros livros policiais do autor. Gostei tanto que procurei outros gêneros literários, escritos por Camilleri, e encontrei novelas e contos. Um desses livros me chamou particularmente a atenção por muitas semelhanças entre a Sicília retratada por ele e os acontecimentos no Brasil na época da ditadura e das carteiradas. Chama-se A Ópera Maldita, e acho que merece ser conhecido por quem gosta de livros. Numa rede, numa sombra de coqueiro, numa bela praia, quando bate a vontade de fazer alguma coisa, peguem um livro que a vontade passa. Camilleri é ótimo pra relaxar sem culpa.

CRISTINA SAKABE

Artigos Escritos por Chico Buarque - 006

Chico Buarque
O Globo/Estado - 14 de junho de 1998
Com os meus botões

Tostão me perguntou meses atrás, aqui mesmo em Paris, se o futebol do Denilson lembrava o Canhoteiro (ponta-esquerda do São Paulo que só eu vi jogar, na década de 50). Vinda de quem vinha, aquela pergunta me paralisou. Fiquei postado na praça, sem raciocínio, olhando para o Tostão. Se bem que, quando topamos um craque de bola no meio da rua, vestido à paisana, andando como a gente anda, falando como a gente fala, nós, amadores, sempre nos atrapalhamos. Viramos idiotas. Certa vez fui apresentado a um antigo centromédio do Santos, o Formiga. Depois de um breve diálogo, o assunto esgotado, sem saber por que continuei a encará-lo. O silêncio se prolongava, incômodo, e ainda encasquetei de colocar a mão no ombro do Formiga. Com o polegar, comecei a pressionar de leve a sua clavícula, e me lembro que ele ficou um pouco vermelho. Então me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava pessoalmente com um botão. Formiga tinha sido um dos meus melhores botões, apesar de meio oval, um botão de galalite, vermelho.

Na minha mesa, Tostão não chegou a ser botão. Eu já era bem crescido quando ele apareceu, e fica um pouco ridículo fazer botão de um jogador mais novo que você. Botões, para a garotada daquele tempo, eram venerados como ícones, beijados, polidos com flanela, concentrados em caixa de charuto e inegociáveis. Pois bem, vi o Tostão deslizar nos gramados e, sem querer desmerecê-lo, era mesmo um homem com braços e pernas. Nem por isso há de nascer um centroavante que se lhe compare, como nunca haverá ponta-esquerda semelhante ao Canhoteiro que só eu vi jogar. Desde já discordo de quem, concordando comigo, sustenta que o futebol era muito mais bonito no passado. Ao contrário de nós mortais, que éramos todos mais bonitos no passado, os craques do passado são ainda melhores hoje. Penduraram as chuteiras, mas na permanente edição da nossa memória vão produzindo novos lances memoráveis. Posso vê-los sempre de uniforme, uniformes diferentes uns dos outros, num vestiário com o teto cheio de chuteiras penduradas. Reúnem-se em torno do técnico, ouvem a preleção em silêncio, mas não prestam muita atenção. Dispensam alongamentos, entram em campo e já começam a jogar. Não dão entrevistas. Não fazem cera, não atrasam a bola, não cobram lateral, não ficam na barreira, faz cada qual o que lhe dá na telha. E no entanto exibem um belo conjunto, mantendo-se invictos há anos e anos, mesmo porque contra eles não há quem se atreva a jogar. Me vendo de boca aberta, naquela tarde gelada, o Tostão não fazia idéia dos gols que continua a marcar dentro da minha cabeça.

“Ele te lembra o Canhoteiro?”, perguntava o Tostão, e de cinco em cinco minutos a pergunta me rebate no ouvido como um gongo, enquanto vejo o Brasil jogar no Stade de France, sem Denilson. Há o grande Rivaldo, seu estilo de ema, há o nosso Ronaldinho, de quem tudo o que se diz não basta, e há um oco. Sim, a ausência do Denilson agora me lembra exatamente o Canhoteiro, cuja camisa Zagallo usurpou na Copa de 58, privando o planeta de ver o que só eu via. Estamos no segundo tempo, Brasil e Escócia um a um, e já me pergunto se, barrando o Denilson, Zagallo não pretende barrar o Canhoteiro de novo, 40 anos depois. Maldade minha, claro, pois eis que o Denilson entra em campo, recebe a bola rente à lateral esquerda, passa zunindo por dois escoceses e toca para o meio, de calcanhar. A jogada foi bem em frente à minha cadeira, permitindo-me ver até o branco dos olhos do Denilson, e não direi o que se passou naquele instante com a fisionomia dele. Não direi de quem era a figura que vi num relance, vestindo a camisa 19, porque nem eu próprio acredito nessas coisas. Mas alguma coisa os escoceses também viram, e ali se assombraram, e se atarantaram, e perderam a pouca cor que têm, e bateram cabeças entre si e fizeram um gol contra.

É um garoto, o Denilson, e imagino o que será seu futebol daqui a mais ou menos 30 anos, quando estarei abarrotado de memórias. Seu drible na corrida, calculo que possa chegar a algo como a velocidade do TGV Paris-Nantes, embora jamais à do Canhoteiro. Babando de antemão, me vejo a lembrar o Denilson adiantando a bola na medida certa, feito isca, para surrupiá-la do bico do pé do beque. Verei o Denilson em nova arrancada, como quem corre num parque, e a bola que corre serelepe ao seu lado, quase latindo. Verei o Denilson desviando a bola sem tocá-la, talvez com um assobio - ele tem boca de assobiador. Verei o molejo dele, trançando as pernas diante do próximo adversário, e, de repente hei de ver o drible de corpo. O drible de corpo é quando o corpo tem presença de espírito.
Se eu fosse menino, faria do Denilson um senhor botão. De tampa de relógio, acho.

Artigos escritos sobre Chico Buarque - 005

Mário Prata
Istoé - 5 de agosto de 1998

O passarinho do Formiga, de Chico Buarque

Éramos três do Estadão lá em Paris, sem contar o meu querido Reali Jr.: o Chico Buarque, o Mateus Shirts e eu. Os três, cronicando. Para evitar que a gente escrevesse a mesma coisa, driblasse o mesmo tema, trocávamos fax (o compositor é contra e-mail).

No primeiro sábado, antes de sair a primeira dominical do Chico, chega o fax: “Com os meus botões.” Um poema, como me diria depois o flamenguista Aluizio Maranhão nosso redator-chefe. Realmente um poema. Em Paris, entre os colegas jornalistas, não se falava noutra coisa.

Leio orgulhoso. Afinal, fui eu quem convenceu o poeta a escrever crônicas na Copa. Tinha certeza de que ia dar samba. A crônica falava dos times de botão do Chico e dos que todos nós tínhamos nos anos 50 e 60, pedaços de plásticos concentrados dentro de uma caixa de catupiri, com direito a talco e flanelinha. E todos os botões tinham nome, é claro. Mas tinha um pedaço na crônica:

“Certa vez fui apresentado a um antigo centromédio do Santos, o Formiga. Depois de um breve diálogo, o assunto esgotado, sem saber por que continuei a encará-lo. O silêncio se prolongava, incômodo, e ainda encasquetei de colocar a mão no ombro do Formiga. Com o polegar, comecei a pressionar de leve a sua clavícula, e me lembro que ele ficou um pouco vermelho. Então me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava pessoalmente com um botão.”

Muito bonito. Só que eu gritei:

- Passarinho! Isso é passarinho do Chico!

- O que que é passarinho?, me perguntou o Mateus abrindo uma garrafa de uísque com os dentes.

- O dedão na clavícula é passarinho!!!

Deixa eu explicar o que é um passarinho. Em 54, o Nelson Rodrigues escreveu uma crônica (acho que na Última Hora) dizendo que a imprensa estava muito chata por falta de passarinhos. E explicava que antigamente era diferente. Que hoje (54) não se mentia mais. Uma vez houve um incêndio na Lapa, mandaram um repórter para lá e reservaram a primeira página. O repórter voltou desanimado: apagaram o incêndio com um regador de jardim. Mas não aconteceu nada que dê notícias? Bem, disse o repórter, tinha um passarinho dentro de uma gaiola muito nervoso. Foi o bastante: “Fogo ameaça fauna na Lapa.”

Era isso: o Nelson estava dizendo que os jornalistas brasileiros não mais aumentavam a notícia, não criavam nenhum passarinho. E nas nossas conversas intercronistas a palavra passarinho é muito corriqueira. Eu, por exemplo, me considero um passarinheiro de marca maior.

Então, pra mim, o dedão na clavícula do Formiga era passarinho. Estava na cara que era. Basta conhecer um pouquinho o Chico. Aliás, um bom, um excelente passarinho. Mas, passarinho.

Passo um fax para a casa do Chico lá em Marais. Não deram dois minutos, toca o telefone. Era ele indignado. Não fala oi, nem nada. Raivoso, atacando e se defendendo ao mesmo tempo, parecia a seleção da Nigéria em seus desengonçados momentos de glória. Ele estava mesmo bravo comigo:

- O dedão na clavícula é passarinho? O dedão na clavícula do Formiga é passarinho?

Nunca tinha visto o cara assim. Dei até um passo atrás lá no meu quarto. Fiquei sem jeito. Achei que eu tinha pegado pesado com ele. Afinal, a primeira crônica dele e eu dizendo que o dedão na clavícula era passarinho? Mas fiquei na minha:

- Desculpa lá, mas é. Você vai me desculpar muito, tá tudo muito bom, muito bonito mesmo, um poema e não sei mais o quê. Até você ficar sem palavras olhando para a cara do Formiga, tudo bem. Colocar a mão no ombro, tudo bem. Mas jogar botão com a clavícula do Formiga, pra mim é passarinho. Um excelente passarinho, diga-se de passagem.

- Você acha mesmo que o dedão na clavícula do Formiga é passarinho?

Eu achava mesmo:

- Acho!

Ele abre uma risada contagiante e mal consegue dizer, triunfal:

- Cara, eu nunca vi o Formiga na minha vida!!!

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Como nasceu o futebol na Bahia

Texto de Luiz Botelho publicado no Jornal A Tarde em 13/03/2006, na seção Brado do suplemento A Tarde Esporte Clube

O Sr. José Ferreira, tesoureiro do British Bank, tinha um filho, o Zuza, como era conhecido na família. O endiabrado garoto deixava seus pais em constante preocupação, pois raro era o dia em que não recebiam uma queixa do menino. Decidiram, então, mandá-lo para a Europa, onde receberia uma educação melhor. Só assim, na Inglaterra, o garoto tomaria juízo - pensavam os pais. Passaram-se quatro ou cinco anos, quando, saudoso, o velho Ferreira resolveu ir buscar seu filho.

No dia 25 de outubro de 1901, singrava vagaroso as águas da Baía de Todos os Santos o Clyde da Mala Real e nele, na amurada do convés, lá estavam de regresso o velho Ferreira e o Zuza, já crescido, com ares de homem e com um sotaque estrangeirado. Nas suas malas, trazia o Zuza, caladinho, uma bola de couro.

Já em terra, logo no primeiro domingo, pela manhã, lá se ia o Zuza, contente, rumo ao Campo da Pólvora com a sua bola na mão. Na Lapa, encontrou os velhos amigos irmãos Tapioca, Petersen e Drumond e os convidou para o Campo da Pólvora. A mulecada, vendo aquele homem com uma bola daquele tamanho na mão, resolve segui-lo.

No Campo da Pólvora, Zuza formou o grupo no meio do campo. Deu algumas instruções, apanhou duas pedras separando-as a uma distância de 10 metros, mais ou menos. Estava feito o gol.

Em seguida, voltou ao meio-de-campo. Dividiu a rapaziada. Um goleiro, dois zagueiros e cinco atacantes. Isso feito, dá um lindo chute, verdadeira bomba.
Estava introduzido o futebol na Bahia – 28 de outubro de 1901.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Reticências (...) Tres pontinhos


Sem nunca me dar por conta, sempre usei os tais tres pontinhos...


Uma vez Tauil me perguntou o porque deles...


Não soube explicar...


Ontem um amigo meu, no msn, me fez a mesma pergunta...


até que li essa frase e me achei nas letras e nos sentimentos


" As reticências são os três primeiros passos do pensamento que continua por conta própria o seu caminho..."


entenderam .... ???

REVEILLON EM CAMAMU

Luiz Botelho
Por força do trabalho passei o Reveillon em Camamu, longe da família e dos amigos. Segundo informações dos moradores da pequena cidade, o ponto alto da festa seria a romaria dos barcos, uma procissão marítima que começa na manhã do dia 31 e acaba no final da tarde quando do seu retorno.

Quando meu despertador tocou às seis horas da manhã, um grande movimento já se ouvia do alto do meu quarto da pousada. Na varanda pude ter uma idéia da dimensão da festa. A quantidade de barcos no cais era muito superior aos dias normais e a mistura de sons me ajudou a despertar definitivamente.

Não vi a saída da procissão que se anunciava bonita, pois tive que percorrer as obras do trecho da rodovia Camamu – Itacaré que não pararam no último dia do ano, para se aproveitar o dia ensolarado que compensava os dias de chuva intensa que castigou esta região o ano inteiro e atrasou a conclusão das obras da estrada.

Trabalhei até às cinco da tarde e fui para o Bar da Marina São Jorge, que fica no melhor estaleiro da Bahia, esperar o retorno da romaria. A quantidade de gente no próprio bar e por toda a orla de Camamu defronte onde eu estava era impressionante, pois contrastava com a rotina da cidade que, em geral, fica quase que deserta.

Às seis da tarde começaram a chegar os primeiros barcos e com eles os primeiros fogos vindos da procissão e da orla da cidade que contagiavam a população, que em delírio saudavam os primeiros navegantes. Paulatinamente toda a romaria adentrou a cidade, trazendo de volta a mistura de sons, e intensificou-se o espocar dos fogos que iluminaram à noite de Camamu até às oito horas da noite.

Terminada a folia dos barcos, rapidamente o bar e a cidade defronte se esvaziaram e, pelo que eu pude entender, todos iriam para suas casas colocarem suas melhores vestimentas para saudarem o novo ano que se aproximava. Recebi até alguns convites de conhecidos, mas não quis trocar meu calção e minha camisa do Bahia por uma roupa que sequer tinha trazido para Camamu. Optei pela festa popular que contava com um mini trio que percorria a pequena orla. Instalei-me no Quiosque da Lili, mas meus velhos e cansados ouvidos não suportaram a tortura musical dos esforçados músicos da região. Às nove e trinta estava de volta ao meu quarto da pousada esperando pacientemente pelas ligações da minha família.

À meia-noite espocaram-se alguns fogos em diversos pontos da cidade, mas sem a intensidade do que ocorreu na romaria. Aproveitei a calmaria e programei meu celular para me despertar às seis da manhã e fui dormir, na certeza de que no dia seguinte o cais voltaria ao seu ritmo normal.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Depoimentos sobre Chico Buarque - 006

José Miguel Wisnick

Chico Buarque, artesão habilíssimo, lê as entranhas dos homens: sua lírica dramática é extremamente sensível ao corpo que sofre e goza. Sua poesia música está cheia de imagens de contundência e de intensidade corporal: ela capta a entranha senvível, e por isso é tão fina para o erótico, o social (lendo o futuro tal como ele se inscreve nas vísceras dos que sofrem) e o feminino.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Depoimentos sobre Chico Buarque - 005

Zuenir Ventura

Release da Polygram para o LP Meus caros amigos – 1976


Ele não é apenas um extraordinário artista popular. É o mais significativo gesto cultural deixado pela geração que por volta de 1964 tinha 20 anos e começava a aparecer.

De todos eles, compositores e cantores, Chico foi quem melhor soube aproveitar as dificuldades e desafios de uma época para instaurar uma estética, elaborar uma estilística e forjar uma estratégia próprias para, com elas, construir uma obra que, pela qualidade e pela quantidade, dificilmente encontra paralelo mesmo nas outras artes do país.
(...) Do Tropicalismo até os dias atuais, a nossa cultura perdeu-se em desvios, freqüentou vazios e desceu aos subterrâneos da irracionalidade e da evasão. Muitos não resistiram. Sem ser o único, Chico no entanto será talvez o mais completo símbolo de resistência desses tempos. O que lhe custou essa luta em defesa da dignidade de seu canto, só seus silêncios forçados podem dizer. (...) O que Chico rejeita, com base na sua experiência presente, é o voluntarismo apressado e onipotente. A este, ele opõe a lucidez de quem sabe que cada um age segundo suas possibilidades e de acordo com as ferramentas de que dispõe - no seu caso a canção. (...) Chico não é o cantor de promessas vãs, mas o firme cantor da esperança. Talvez por isso a sua estratégia de resistência cultural, mesmo reconhecendo as próprias limitações, não se tenha conformado em aceitar a tentação quietista de uma “estética do silêncio” ou do “viez” ou do “desvio” ou da “omissão” ou da “adesão”, que estiverem tão em moda. Em lugar destas e no estreito espaço que lhe restou, ele criou uma “estética do possível” capaz de, em tempos de interdição, construir uma obra que resiste a qualquer tempo. Conjugando alguns dos mais ricos encontros já havidos entre poesia e melodia - Construção, Olê, Olá, Roda Viva, Noite dos Mascarados, Tem mais Samba, Sonho de um Carnaval, etc, etc.- a obra de Chico tem tantos momentos de genialidade, que se descobre ser ela sozinha uma antologia da nossa música popular.

domingo, 30 de dezembro de 2007

Depoimentos sobre Chico Buarque - 004

José Nêumanne
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, poeta e escritor
Ave & vate

Antes que o cordial cidadão brasileiro Francisco Buarque de Hollanda se despeça do público paulistano no Palace em mais um de seus esporádicos, mas também magníficos shows, este imodesto e certamente intrometido escriba pede vênia para tecer considerações esparsas sobre uma página que Mauro Dias produziu no Caderno 2 do Estado sobre a letra de “Construção”.

A página tinha duas importantes motivações. A primeira era o chamado gancho jornalístico. Durante muito tempo, “Construção” só pôde ser ouvida no arranjo original (assinado por Rogério Duprat), mercê dos óbvios predicados deste. Mas no show em fim de temporada nesta desvairada Paulicéia, onde o autor foi criado e estudou arquitetura, este ousou apresentá-la em roupagem nova, também de gala, sob os cuidados de linha e tesoura de Luís Carlos Ramos. Valeu. E basta.

Havia outro motivo, talvez mais relevante: “Construção” é uma definitiva obra-prima da música brasileira. Figura ao lado de “Ô Abre Alas”, “O Teu Cabelo não Nega”, “Feitiço da Vila”, “Aquarela do Brasil”, “Carinhoso”, “Desafinado” e “Águas de Março” como produto antológico, graças, sobretudo, à letra precisa e instigante.

Os convidados de Mauro, todos letristas competentes, deram notáveis contribuições ao entendimento dessa preciosidade retomada pelo autor. Merecem destaque, se não me trai a memória, pois cito ao sabor dela, sua inédita e inusitada estrutura de quebra-cabeça e a ousadia, à Maiakóvsky, de dar um tratamento formal revolucionário a um conteúdo temático rebelde em si mesmo, qual seja a morte de um peão de obras caído do andaime.

Sem ser um especialista, gostaria de chamar a atenção para essa ousadia formal. Chico, o letrista, opera com as dificuldades próprias da língua para entregar ao ouvinte as óbvias facilidades permitidas por seu gênio inventivo. O inglês é a língua da poesia (e sobretudo dos poemas orais e das letras, as lyrics, de canções), por ser predominantemente um idioma constituído por palavras de poucas sílabas, muitas monossilábicas, o que facilita a distribuição das tônicas, que dão aos versos o ritmo que lhes cabe. Ao traduzir poemas de W. B. Yeats e do padre Gerard Manley Hopkins, pude vislumbrar as dificuldades de encontrar ritmos semelhantes em nosso universo vocabular, com presença maior de polissílabos e, por isso mesmo, maior freqüência de sílabas átonas.

Poetas da superfície chorarão sobre a sofisticação rítmica necessária para escandir os vocábulos que Camões burilou. Não Chico, poeta afeito ao ar rarefeito dos píncaros. Ele vai além e explora a riqueza semântica da composição de versos com polissílabos, radicalizando a dificuldade rítmica com o uso de vocábulos proparoxítonos. A letra de “Construção” chama atenção exatamente pela proliferação de rimas internas (talvez fosse o caso de defini-las como íntimas) nas últimas palavras dos versos.

Uma contradição em termos? E também um achado primoroso. Afinal, ela não cumpriria sua intenção de narrar – e denunciar, sem discursar, mas apenas relatando – o acidente de trabalho como um quebra-cabeças, se seu autor não tivesse tanta habilidade para explorar as nuances rítmicas que só os proparoxítonos peculiares às flores do Lácio permitem.

E assim, mexida a colher, este poeta da planície saúda a ave-vate (vôte), ora alçando vôo para outras paragens, mas sempre em busca de pouso em ninhos verbais que só seu talento alado sabe tecer.