domingo, 30 de dezembro de 2007

Depoimentos sobre Chico Buarque - 004

José Nêumanne
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, poeta e escritor
Ave & vate

Antes que o cordial cidadão brasileiro Francisco Buarque de Hollanda se despeça do público paulistano no Palace em mais um de seus esporádicos, mas também magníficos shows, este imodesto e certamente intrometido escriba pede vênia para tecer considerações esparsas sobre uma página que Mauro Dias produziu no Caderno 2 do Estado sobre a letra de “Construção”.

A página tinha duas importantes motivações. A primeira era o chamado gancho jornalístico. Durante muito tempo, “Construção” só pôde ser ouvida no arranjo original (assinado por Rogério Duprat), mercê dos óbvios predicados deste. Mas no show em fim de temporada nesta desvairada Paulicéia, onde o autor foi criado e estudou arquitetura, este ousou apresentá-la em roupagem nova, também de gala, sob os cuidados de linha e tesoura de Luís Carlos Ramos. Valeu. E basta.

Havia outro motivo, talvez mais relevante: “Construção” é uma definitiva obra-prima da música brasileira. Figura ao lado de “Ô Abre Alas”, “O Teu Cabelo não Nega”, “Feitiço da Vila”, “Aquarela do Brasil”, “Carinhoso”, “Desafinado” e “Águas de Março” como produto antológico, graças, sobretudo, à letra precisa e instigante.

Os convidados de Mauro, todos letristas competentes, deram notáveis contribuições ao entendimento dessa preciosidade retomada pelo autor. Merecem destaque, se não me trai a memória, pois cito ao sabor dela, sua inédita e inusitada estrutura de quebra-cabeça e a ousadia, à Maiakóvsky, de dar um tratamento formal revolucionário a um conteúdo temático rebelde em si mesmo, qual seja a morte de um peão de obras caído do andaime.

Sem ser um especialista, gostaria de chamar a atenção para essa ousadia formal. Chico, o letrista, opera com as dificuldades próprias da língua para entregar ao ouvinte as óbvias facilidades permitidas por seu gênio inventivo. O inglês é a língua da poesia (e sobretudo dos poemas orais e das letras, as lyrics, de canções), por ser predominantemente um idioma constituído por palavras de poucas sílabas, muitas monossilábicas, o que facilita a distribuição das tônicas, que dão aos versos o ritmo que lhes cabe. Ao traduzir poemas de W. B. Yeats e do padre Gerard Manley Hopkins, pude vislumbrar as dificuldades de encontrar ritmos semelhantes em nosso universo vocabular, com presença maior de polissílabos e, por isso mesmo, maior freqüência de sílabas átonas.

Poetas da superfície chorarão sobre a sofisticação rítmica necessária para escandir os vocábulos que Camões burilou. Não Chico, poeta afeito ao ar rarefeito dos píncaros. Ele vai além e explora a riqueza semântica da composição de versos com polissílabos, radicalizando a dificuldade rítmica com o uso de vocábulos proparoxítonos. A letra de “Construção” chama atenção exatamente pela proliferação de rimas internas (talvez fosse o caso de defini-las como íntimas) nas últimas palavras dos versos.

Uma contradição em termos? E também um achado primoroso. Afinal, ela não cumpriria sua intenção de narrar – e denunciar, sem discursar, mas apenas relatando – o acidente de trabalho como um quebra-cabeças, se seu autor não tivesse tanta habilidade para explorar as nuances rítmicas que só os proparoxítonos peculiares às flores do Lácio permitem.

E assim, mexida a colher, este poeta da planície saúda a ave-vate (vôte), ora alçando vôo para outras paragens, mas sempre em busca de pouso em ninhos verbais que só seu talento alado sabe tecer.

Nenhum comentário: