sábado, 29 de dezembro de 2007

Depoimentos sobre Chico Buarque - 003

Rosiska Darcy de Oliveira
Escritora e Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 1999.

MAIS VELHO? TALVEZ...Aliás, certamente, embora, para nós que temos vinte anos há muitos anos, Chico seja sempre um guri. Mas o rosto de bronze é de um homem que sua, sofre e ri. Chico no palco outra vez. Que alívio. Chico está aí. Traz na voz as emoções melhores que já tivemos e as oferece, de novo, com a doçura de quem nos estende a mão.

Há tantos anos eu não ouvia a “Construção”. “Construção” que se atravessou na minha garganta como um tijolo desde os anos setenta. Não podia, não queria. Uma espécie de silêncio sagrado cercava em mim esse que é um dos mais belos poemas da língua portuguesa, meus olhos “embotados de cimento e lágrima”.

“Construção” foi o mais sólido desenho mágico de Chico, não apenas na poesia, na perfeição em cada andar dos versos, mas na arquitetura da vida de um homem que chega aos cinqüenta anos cercado de um amor e de um respeito comoventes.

Só quem o viu atravessar a avenida, “o Chico das artes, o gênio, poeta Buarque, boêmio”, carregado pela voz do povo e a bateria da Mangueira, chapéu de malandro e sorriso de lorde, só quem o viu voltar três vezes à cena do Canecão, sob as luzes diáfanas de Ney Matogrosso, colhendo os aplausos dos colegas de todos os ramos de arte que, de pé, o consagravam, só os que viram ou podem imaginar saberão que ali estava o que há de melhor em nós. Foi isso que Chico construiu. Construiu-se a si mesmo como um emblema de dignidade.

Construiu-nos a nós também. Há trinta anos, violão em punho, seresteiro nato, nos contando tudo aquilo que já sabemos, o amor, as mulheres, o desejo, a dor, mas sem pudor, próximo de cada um como um melhor amigo, aquele a quem se conta “o que dá dentro da gente que não devia”, “o que não tem governo nem nunca terá”, “o que não tem juízo”.

Construiu uma grande amizade nacional em torno dele, uma confraria de milhões, uma linguagem, expressões que são de todos os brasileiros, que permeiam as frases como citação ou como referências, senhas que sabemos que os outros entenderão. Um dia ouvi de um homem ferido pelo amor infeliz, citando a música, a pergunta sucinta: “O que é isso, quem brincava de princesa acostumou na fantasia?”. O drama desfez-se e juntos fomos em dueto até o fim da canção, a favorita e o mestre-sala. O que Chico melhor fez e faz é manter vivos os sonhos.

Nesse começo de ano sombrio, em que os ternos e as gravatas escuras ocupam páginas inteiras dos jornais crivados de más notícias, que bem faz esse homem solar, vestido de branco como convém ao verão carioca, lembrando ao Brasil as suas cidades, tantas, seus rostos tão diversos, suas raças misturadas, seus denominadores comuns, seu maestro companheiro, seu Antônio Brasileiro. Trazendo à vida os mortos queridos: Antônio Brasileiro de Almeida Jobim.

Não o conheço pessoalmente. Há anos descemos juntos em um elevador no Hotel L’Abbaye, em Paris, onde ambos costumávamos nos hospedar. Cumprimentei-o com a discrição com que trato as pessoas públicas em situação privada. Mas pensei, cá comigo, que calava um agradecimento que tinha na garganta.

Se não disse no elevador, por timidez e respeito, digo agora e de público. Chico, sou-lhe muito grata pelo bem que você faz ao Brasil, pelas alegrias que nos deu e que nos dá. E, por isso, em ritmo de “Construção”, finalizo: pela noitada acordada para melhor lhe ouvir, por essas horas felizes para relaxar e curtir, por nos fazer respirar, por nos fazer resistir, Deus lhe pague.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Depoimentos sobre Chico Buarque - 002

Walter Silva

Como conheci Chico – 1976

Do particular para o geral, dizem, está a melhor maneira de comunicação. “Pinte a sua aldeia e você será universal” (Tolstoi). Essa, talvez, seja a melhor forma para falar sobre o que sei, penso e acho sobre Chico Buarque de Hollanda, que no meu jornal não deixam sair com dois “l”. Naquela época era “anticomercial” tocar bossa-nova em rádio - aliás por isso mesmo fomos afastados do programa radiofônico de maior audiência em todo o Brasil, “O pick-up do picapau”, que era levado pela Rádio Bandeirantes. Não nos restava outra alternativa a não ser o teatro.

Como os meninos do Centro Acadêmico XI de Agosto já haviam realizado com enorme sucesso “O fino da bossa”, com o qual também colaboramos, a idéia só podia mesmo nos animar. Assim, sem nunca ter entrado na coxia de um teatro, lá fomos nós alugar o Paramount para espetáculos de música brasileira moderna. Apoiados na idéia de usar os centros acadêmicos para divulgar e patrocinar os mesmos, já marcamos para o dia 16 de outubro de 1964 o primeiro deles, que se chamou Mens Sana in Corpore Samba, claro que promovido pelos alunos da Escola de Educação Física do DEFE (Departamento de Educação Física e Esportes). Na primeira parte, amadores com os quais já havíamos tido contato antes em shows beneficentes (como o que ajudamos a produzir para a Associação de Moças e que foi realizado no próprio Paramount, do qual participaram, entre outros, Elis Regina e Silvio César, que faziam uma temporada na boate Djalma’s, na Praça Roosevelt). Esses amadores eram Toquinho, Taiguara, Ivette, Bossa Jazz Trio, Maria Lúcia, César Roldão Vieira e Solano Ribeiro, que na época cantava num conjunto de rock chamado “The Avalons”, mas que na última hora acabou não indo. Na segunda parte participaram Silvinha Telles e conjunto de Roberto Menescal.

Ajudavam a gente na elaboração do espetáculo, além dos estudantes e pessoas de sua família, dois rapazes que eram verdadeiros apaixonados pela coisa. Um deles, Homero Honório Ferreira Filho, é hoje cunhado de Chico Buarque, casado com sua irmã Cristina; o outro, Antônio Márcio Fernandes Costa - ambos de São José do Rio Preto e estudantes universitários. Manoel Barembein, que era divulgador de discos e estudioso de som, cuidava da parte técnica dos shows. Eram os três da mesma idade e transavam muito o barzinho em frente ao Mackenzie, onde se realizavam, na hora do almoço, os conhecidos encontros de samba, chamados “Sambafo”, dos quais fazia parte um tal de “Carioca” - Chico Buarque. Um dia, antes do espetáculo já citado, chega-se a nós o Homerinho e diz:

- Rapaz, você precisa ouvir o “Carioca”, um cara que canta no “Sambafo” do Mackenzie. Ele estuda na FAU e é superengraçado.

- Manda o “Carioca” procurar a gente aqui no teatro, dissemos nós.

E já no dia seguinte estava lá o moço com ar de tímido, mas com uma cara de malandro encoberto que dizia tudo sobre ele e suas intenções. Devia ter, no máximo, uns 19 anos. Tocava muito mal violão e tanto melódica e como harmonicamente nada tinha que ver com o que nos propúnhamos. Além de segurar o bordão com o polegar da mão esquerda, não tinha nada de atraente como ritmista e melodista. Em compensação suas letras eram de uma força incrível e apesar dela, ou por isso mesmo, sua cara de sonso comunicava muito. Começou a freqüentar a casa da gente como os demais e num curto espaço de tempo já era líder da turma. Todos queriam cantar suas composições. Não raro aparecia às 10 horas da manhã, com aquela cara de quem não dormiu nada e bebeu muito. Vinha num Aero-Willys bordô, daqueles bem desbotados, e ia entrando com decisão e pontaria. O barzinho era seu alvo, depois o sofá e em seguida o violão. Cantava, tocava e pouco falava ou discutia. Marcava sempre sua presença por tiradas de muito humor e inteligência e de imediato sabia-se que estava acima dos demais que com ele começavam. Tinha uma resposta irônica para tudo e a cada instante, denotando uma experiência muito grande para seus poucos quase vinte anos. Entrosava-se muito com Maria Lúcia, que era a mais extrovertida do grupo e que adorava cantar suas músicas. Um dia, num show que levamos na Hebraica, Chico e Maria Lúcia cantaram juntos “Primavera”, de Carlos Lyra e Vinícius, da peça “Pobre menina rica”.

Já que formavam um par jovem muito bonito, usamos o aspecto físico dos dois e os colocamos cada um numa extremidade do palco, sentados no chão e com as pernas balançando para fora, de frente para a platéia. O número saiu lindo e os aplausos maiores foram para os dois, embora naquela noite homenageássemos outro autor novo que conosco caminhava, o Adilson Godoy.

A idéia de lançar todas ou o maior número possível de músicas de um só autor dos jovens deu certo naquela noite e animou-nos a fazer o mesmo com Chico já no show seguinte, cujo nome era 1ª Denti-Samba e, como o trocadilho infame já denuncia, era dos alunos da Faculdade de Odontologia. Durante toda a primeira parte, os amadores só cantaram músicas de Chico Buarque, algumas das quais jamais regravadas ou lançadas por ele, como, por exemplo, “Malandro quando morre”. “Malandro quando morre vira samba / mulher vira uma flor no céu”, que foi muito bem interpretada por Maria Lúcia. O show dessa primeira parte, escrito por nós, chamava-se Sambairro e defendia o direito de todos serem bairristas. “Some-se depois esse bairrismo todo e teremos um imenso universalismo.” Na segunda parte do espetáculo, explodia Elis Regina com o Copa-Trio (Salvador, Dom Um Romão e Gusmão). Casa supercheia e paletós jogados para cima numa histérica maneira de aplaudir, não mais vista nos últimos onze anos.

Chico cantou quatro músicas e seus colegas amadores desfilaram quase todo o repertório do “Carioca”. O maior sucesso da noite foi “Marcha para um dia de sol”, que nós sugerimos que se transformasse em “João XXIII”. “Eu quero ver um dia / numa só canção / o pobre e o rico andando mão e mão / que nada falte, que nada sobre / o pão do rico / o pão do pobre...” A platéia, toda feita de jovens que já sabiam do Chico, cantou junto e quase vira carnaval. Ao final do espetáculo, o compositor e psiquiatra Roberto Freire enxugava as lágrimas e dizia:

- Menino, algo está começando. Algo está começando... E estava mesmo. Começava ali uma das mais importantes carreiras artísticas de toda a história de nossa música popular. Começava ali o ciclo Chico Buarque.

No mês seguinte, novembro de 1964, estudantes de um ginásio de Campinas marcaram um show para sua cidade, realizado no Cine Ouro Verde. Seria no dia 23 de dezembro, dois dias, portanto, antes do Natal. Para participar desse show, os amadores também seriam pagos. Cada um receberia a importância de 50 cruzeiros, que, aliás, não foi paga para a maioria, uma vez que os meninos de Campinas deram um tremendo cano. Só uma parte da turma recebeu. Para alguns profissionais tivemos que dar um cheque, coisa que não agradou o pessoal. Houve até um que, por não receber no dia marcado, levou pro protesto. Tudo bem. Os profissionais que participaram do espetáculo de Campinas foram Pedrinho Mattar, Oscar Castro Neves, Alaíde Costa, Paulinho Nogueira, entre outros. Mas foi Chico Buarque quem chamou a atenção da maioria das pessoas presentes. Contente com o primeiro cachê resolveu, junto com seu inseparável amigo “Barão”, ir passar o Natal em Borborema, pequenina cidade próxima a São Carlos. Aproveitou o táxi que nos levaria a Rio Preto e parou na Praça de São Carlos, junto com “Barão”, tocando violão, cantando e bebendo tudo. Chico sempre teve um só compromisso: consigo mesmo. Era de uma independência total e dono de seus atos. Quem quisesse se enturmar, que se enturmasse com ele, pois ele não se enturmava com ninguém.

Veio o dia em que Chico gravou seu primeiro disco. A RGE, que cedia todo o seu equipamento de som para os nossos shows no Paramount, resolveu atender ao nosso pedido mais do que insistente para que se gravasse com o pessoal novo que estava sendo lançado. Por muito favor José Scatena, dono da gravadora, achou uma hora livre e cedeu-nos o estúdio “B” de sua gravadora. O “A” já era ruim, imaginem o “B”. Uma sala diminuta, onde havia uma mesinha para locutor, uma cadeira e um microfone. Só isso. Somando tudo não dava mais de 4 metros quadrados. Com o pé sobre a cadeira e tocando violão, assim foi feita a primeira gravação de Chico Buarque: “Pedro pedreiro”, um dos seus muitos sucessos nos shows do Paramount.

Depois veio o festival da Record e com ele “A banda”. Nessa ocasião uma importante passagem: o 1° lugar ficara com o Chico, mas ele exigiu que fosse dividido com o Vandré e sua “Disparada”. No dia da apresentação da “Banda”, às 5 da tarde, mais ou menos, Chico assinou contrato de edição de sua música com a Fermata. Testemunhas, Manoel Barembein e Glorinha Moreira. A edição de Enrique Lebendiger ganhou seu maior sucesso até hoje.
Antes desse dia, levamos Chico e César Roldão Vieira, a pedido de Lebendiger, para editar suas músicas naquela editora. Como ambos estavam “duros”, Lebendiger deu a cada um 250 cruzeiros. Eles, que pensavam que uns 30 estariam muito bem, saíram doidos com tanto dinheiro que acabavam de ganhar como adiantamento de seus futuros direitos. Também contente, Lebendiger fez-nos sócios de uma editora que recebeu o nome de M.B.M. (Música Brasileira Moderna). Como nunca entendemos do assunto, duros, vendemos nossa parte ao sócio-editor meses depois por 10 milhões (antigos). Foi uma festa. Antes tivéssemos ouvido os conselhos de Chico de Assis e de José Roy, que, na porta da editora nos pediam para desfazer o negócio, uma vez que só no carnaval a gravação de “A banda” nos daria mais de trezentos milhões (antigos). Não acreditamos e ainda fomos vítima de uma intriga feita, não se sabe por quem, que nos separou de Chico Buarque por sete anos. Nunca mais nos falamos, até que um dia, ou melhor, numa noite, depois de um show pelo circuito universitário no Tuca, em pleno Restaurante Gigetto, sentimos um tapa nas costas. Era ele que nos cumprimentava e nos abraçava. E ambos, sentimentalóides como todo brasileiro, nos pusemos a chorar, sem perguntas, sem respostas. Acompanhamos suas atuações à distância. Sentimos o quanto ele evoluiu e fez evoluir nossa música popular. O quanto de importante ele representa e representou para a formação de nossa cultura popular urbana. Chico Buarque, o “Carioca” da FAU, é universal porque soube cantar e pintar sua aldeia. Tolstoi estava certo.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Depoimentos sobre Chico Buarque - 001

José Celso Martinez Corrêa
Publicada no programa original da peça Roda Viva


O que você acha de Chico Buarque autor? "Roda viva" pode ser chamado de um passo gigante para quem inicia?

Zé Celso - Não acredito hoje em dia em separação de gêneros de arte - teatro aqui, cinema lá, etc. Hoje tudo se mistura numa única linguagem impura e mista de comunicação, em que vale tudo. A arte toda, forma um emaranhado que se apresenta como um repertório de formas e signos a serem utilizados para comunicar o artista de hoje, principalmente no Brasil, se tem o que comunicar pode entrar por todas as linguagens e gêneros que quiser. No teatro, então, isto é particularmente óbvio. O teatro, como representação de uma ação vital, parte do princípio que tudo é representável, assim eu poderia muito bem em vez de montar "Roda viva" estar montando "A banda". "A banda" é uma canção que pode ser um filme, uma peça, um quadro, dependendo da re-leitura para embarcar em qualquer um desses gêneros. Neste sentido Chico não se inicia no teatro, mas sim usa de uma linguagem mais próxima do teatro para comunicar-se. Sua peça é uma música, é cinema, é conto, enfim, é uma forma de expressão e de opção perante as coisas de Chico Buarque de Hollanda. E é óbvio que pelo nível de relação que ele conseguiu estabelecer com o público, pelo nível de sua arte, de sua linguagem, sua peça testemunha uma força comunicativa de suas músicas. Neste sentido não é um passo gigante para um caminho de realização de autor teatral, nem creio que Chico pretenda isso, mas um passo na conquista da expressão de toda a estética com seu público. Amanhã ele poderá fazer um filme ou uma novela, por que não? E estará dando seu passo na realização de sua obra de criação.

Se a peça fosse de um Benedito qualquer você acreditaria igualmente no sucesso?

Zé Celso - Claro que sim. Tanto assim que acredito que ela vai não somente corresponder, mas ultrapassar a expectativa. O público vai conhecer os outros rostos de Chico. O que aliás é normal, pois é muito cedo para Chico ser uma imagem coagulada e definitiva. Mas evidentemente que o caso da peça se tratar de um material de Chico Buarque, o sucesso crescerá. Não somente pelo aspecto mais evidente da popularidade de Chico, como também pelo fato de dizer respeito à matéria que interessa a todo o público brasileiro. Aliás eu aceitei dirigir a peça por isso. Talvez sinceramente não tivesse o mesmo empenho se fosse de outro autor. Mas como diretor, que oportunidade rara para optar e me manifestar sobre este material que é o fenômeno Chico e seu público! Meu estímulo para o espetáculo foi poder como diretor de teatro da minha geração lidar com um material mais consumido da minha geração. Mesmo se eu detestasse a peça e o Chico, eu seria uma besta de perder a oportunidade de trabalhar com esta matéria nas mãos. Neste sentido acho que a peça será de imenso sucesso, pois ela trata de um fenômeno nacional. Estes fenômenos estão aí para serem expostos pra jambar, pra serem analisados, elucidados e sentidos.

Você há de concordar que os principais nomes do elenco são pouco conhecidos em São Paulo. Você acredita que só o nome de Chico levará o público necessário, ou acredita mais na montagem da peça?

Zé Celso - Faz já um bom tempo que os nomes vedetes somente afastam o público invés de trazê-lo ao teatro. Eu estou trabalhando com uma equipe sensacional - treze atores recém saídos do Conservatório, sem qualquer ranço teatral, trazendo para cena uma vitalidade nova e uma verdade humana mais recente para os palcos - eles fazem o coro, dançam, cantam, representam, e duvido que qualquer elenco autômato e edulcorado da Broadway conseguiria: é um coro ultra-brasileiro, na base da violência de expressão, do anti-charme cafono da Broadway e que compensa em inteligência e garra tudo o que falta em técnica: são geniais e porraloucas! Depois, trabalho com cinco atores da nova geração, é só por que eu quero. Eles com sua visão mais agressiva de sua relação com o público vão transmitir fluidos positivos para o público e irão atraí-los às pampas, mesmo que for para sacudi-los no seu marasmo e na sua apatia. Agora é claro que o Chico vai trazer sua multidão para o teatro, mas esta multidão vai se dobrar em contato com o espetáculo, ou se dividir ao meio, o que é possível também. Quanto ao fato de acreditar mais na peça que na montagem, isto não existe. Para mim é tudo uma coisa só, como expressão única, nunca consigo separar uma coisa da outra. No momento em que, como diretor, eu releio o texto do autor, este passa a ser meu texto e o que encontro no texto, ou a propósito do texto, passa a ser do autor, é uma objeção em si do espetáculo - nem do Chico, nem meu, nem do Castilho, que é um ótimo diretor musical, (compositores associados, como diz o Chico), nem do cenógrafo Flávio Império, que vai falar pacas com sua cenografia. O espetáculo é de todos nós.

"Roda-viva" é uma autobiografia de Chico Buarque de Hollanda?

Zé Celso - Não! A não ser em um pequeno trecho do segundo ato. Mas introduz uma nova visão na biografia do Chico. Eu até sugeri que o cartaz da peça fosse o Chico num açougue. Ou os olhos verdes do Chico boiando como dois ovos numa posta de fígado cru. Foi assim que eu vi o Chico do "Roda-viva".

A peça teria condições de fazer sucesso montada em outro país?

Zé Celso - Espero que o Itamarati crie condições para este teste.

Plínio Marcos foi a grande revelação de 67. Você acredita que se o Chico continuar escrevendo poderá ser o Plínio de 68?

Zé Celso - Se a coisa é na base do autor 67, 68, eu estou muito curioso e quero montar o autor 69. Ainda bem que Chico foi lançado este ano. Espero que em 69 seja uma dramaturga.

O assunto do momento: Você aceita - e acha necessário - o palavrão no teatro?

Zé Celso - O palavrão existe no teatro e graças a Deus fora dele também - e as autoridades deveriam prestigiar o palavrão, pois se não fosse ele acho que este regime já teria caído. Como ele hoje em dia no Brasil é necessário no pão nosso de cada dia!! E como ele descarrega!!! Acho que nunca se falou tanto palavrão no Brasil como hoje em dia. Por quê?

Como você situa o teatro brasileiro? Acha que ele poderá sobreviver apesar das crises econômicas, do subdesenvolvimento, da nossa censura e da anunciada falta de público?

Zé Celso - Acho que não. Aliás, não somente o teatro não sobrevive neste país se alguma coisa não modificar. Eu sinto que nossa geração está no limiar: todo o esforço do pessoal de teatro, cinema, etc., está dando com os burros n’água em virtude da situação de crise econômica permanente e progressivo terrorismo cultural. O esforço criador é imenso e a eficiência incrível, super-desenvolvida, maravilhosa, racional. E o esforço que a censura fez para destruir tudo é maior ainda. No setor público é das raras coisas que funcionam neste país e com isso nós todos ou tomamos uma providência séria ou vamos ter uma vergonha imensa de nos encontrarmos uns com os outros. Estou só querendo esconder nossa castração progressiva e triste.

Os chamados donos de teatros estão preferindo montar "shows" musicais onde afirmam gastar menos e ganhar mais. Você aceita este tipo de montagem?

Zé Celso - Eu aceito qualquer tipo de montagem, mas esta história de gastar pouco para ganhar mais não resolve. O negócio é gastar o que for preciso para ganhar muito mesmo.

Por que as peças culturais não fazem sucesso? Nosso público ainda não está preparado para um bom teatro? Nossas montagens podem ser comparadas às melhores do mundo?

Zé Celso - Quem inventou isso de que as peças culturais não fazem sucesso? Talvez esse nome "peça cultural" é que cheirou um pouco mal, deve ser invenção do teatro cafono de Boulevard para destruir o que acabou com ele. Hoje em dia somente fazem sucesso as peças que tenham um sentido de choque cultural. Com a TV à toda a única função do teatro será a de auto-penetração coletiva e discussões de nossas mitologias mais recalcadas e profundas, de nossas neuroses coletivas - e são muitas!!! O teatro tem que exercer a sua função de diálogo cara a cara com o público - e é este encontro que nós brasileiros de classe média nos furtamos a todo momento: que se tem de acontecer que aconteça no teatro.

E novela de televisão - ela esmaga um ator no sentido da palavra, apesar de consagrá-lo junto ao público, como é o caso de vários "canastrões" que foram transformados em ídolos? É a mesma engrenagem da "Roda-viva" do Chico?

Zé Celso - O fato de ser ou não canastrão não importa tanto, talvez ajude um pouco o indivíduo a ser ídolo - um temperamento de ator com uma personalidade mais revolucionária, mais complexa, mais criativa, talvez não servisse, talvez a imagem de uma TV censurada e totalmente comercializada precise mesmo de canastrões - mesmo porque o público médio de TV é ultra-canastrão. Quando não se pretende mais de um indivíduo do que vender-lhe sabonete, acho que mesmo o autor não sendo um canastrão (conheço vários que não são e fazem da TV um meio de vida e são meus amigos) - é conveniente se castrar, esquecer seu estômago e sua cabeça e ser um boneco estúpido, entretanto não creio que o mal seja da novela em si e das comunicações de massa, o problema é o da censura e o da TV existir como veículo de vendas tão somente, sem o menor sentido cultural de diálogo de uma sociedade de massas com seus modelos - os modelos são impostos e fabricados sem nenhum sentido como veículo de consumo: uma sociedade que pode consumir, consome seus cacarecos e muito bem, é o que eles tem que fazer. Mas no Brasil, onde existe todo um esquema de necessidade de revolução social e política, a TV como se estrutura hoje é um ópio do povo. É neste sentido que ela aparece em "Roda viva" - e ela passa a canalizar para seu universo de conformismo todas as revoltas latentes. Assim, no primeiro ato, todo o sentido religioso da TV fornecendo meios de satisfazer misticamente todo o anseio de consumo do povo que não poderá consumir: Bem Silber - o ídolo de prata. O ídolo é devorado e idolatrado enquanto representa aquele membro da comunidade que consome mais que todos. No segundo ato a fossa do ídolo, o drama do ídolo vendido alimenta toda a "fossinha nacional". Finalmente sua revolta política é logo canalizada para a festividade, para a bossa. "Poder Jovem", para a grandiloqüência de sê-lo comemorativo à TV, capitaliza e vende a imagem bossinha e esquerdinha do ídolo, até vender a sua morte. O espetáculo termina com mais mistificação. O "hippie" apalhaçado, importado, o culto da margarida, e terminado o espetáculo - programa de TV, tudo volta ao seu lugar, nada se passa - a banda passa - e tudo continua na mesma, muito barulho por nada.

Por que o teatro sério não fez sucesso na televisão? Culpa do público ou do horário em que eram montados?

Zé Celso - O teatro nunca foi montado seriamente na TV. Na Europa alguns canais que fazem peças dão a mesma importância que dariam se este espetáculo fosse estrear numa casa de espetáculos importante ou como se rodasse um filme. Os ensaios levam o tempo que a peça normalmente exigiria: são feitos cenários, figurinos especiais, música, etc., e a coisa é divulgada com antecedência até o dia em que a peça vai ao ar. Neste dia os receptores captam um espetáculo da qualidade de um bom filme ou de uma peça no teatro e não um improviso como sempre foi o caso na TV brasileira. Eu vi Pequenos burgueses na TV italiana, era um grande espetáculo; o videoteipe italiano depois foi dublado e passou por toda a TV européia, foi um enorme sucesso. É claro que não serve para vender sabonete, pois a peça era tão boa e interessante que o espectador depois dela podia até ficar sem tomar banho uma semana.

Alguém pode viver de teatro no Brasil?

Zé Celso - Eu vivo. Mal, como a maioria do nosso povo, mas vivo.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O jovem executivo do futebol

Pasquale Cipro Neto afirmou outro dia em seu programa semanal na rádio Cultura: “Vivemos um dos períodos de juventude mais careta da história”, e enfatizou: “Careta de doer”. Chico Buarque, no filme sobre Vinícius de Moraes, disse que não imaginava o poeta vivendo no mundo atual, pois ele era um “desvairado” (ou algo assim) e a sociedade está extremamente pragmática, e sentenciou: “Vivemos a vitória do consumismo”. Na semana passada Kaká foi eleito o melhor jogador do mundo pela Fifa. E comprovou, no campo futebolístico, as afirmações do professor e do compositor.
O status quo força as pessoas, de qualquer atividade, a serem pragmáticas. Sem perda de tempo, sem criatividade desnecessária, sem atitudes polêmicas. E é exatamente esta a figura do camisa 22 do Milan e o maior símbolo esportivo brasileiro deste way of life. Bom menino, evangélico, objetivo, ótima relação custo-benefício a seu empregador e fiel pagador de seus impostos. No mundo corporativo, seria definido como “jovem executivo, dinâmico e pró-ativo”, como as empresas tentam enquadrar (ou idiotizar) seus funcionários.
Enquanto isso, verdadeiros gênios do futebol, como Alex (do Fenerbahçe), Messi (Barcelona), Cristiano Ronaldo (Manchester) e Valdívia (Palmeiras) são colocados em segundo plano. Estes, certamente, não passariam em dinâmicas de grupo de empresas.
Arena multiuso?
Outra coisa irritante é a nova moda de usar o termo “arena multiuso”. O Atlético-PR diz que já tem e o Palmeiras promete construir a sua. Sendo claro: arena multiuso não passa de um estádio com lojinhas. É desnecessário esse nome tão moderno quanto imbecil. Enfiam essa linguagem rebuscada goela abaixo, e em poucos minutos o povo sai repetindo igual papagaio: “Também quero uma arena multiuso”. Estádio é estádio, como nos bons tempos em que futebol era futebol. Só espero que não adotem como oficial a terminologia “soccer”. Do jeito que as coisas estão, não é nada impossível.

Prá animar a 2a. feira


domingo, 23 de dezembro de 2007

Tropa de Elite e para a elite

Tropa de Elite, o filme de maior sucesso do cinema brasileiro, é tecnicamente muito bem feito. Também não é pra menos. Quem foi ao cinema viu a quantidade de patrocinadores que investiram na produção. Antes do filme começar são quase 5 minutos só mostrando os logos de grandes empresas. E como sabemos, quem paga a banda escolhe a música! E a burguesia brasileira não ia pagar pra fazerem um filme que mostrasse a verdade, ou seja, de que ela – a burguesia – é a real responsável pela barbárie em que vivem as porções marginalizadasda população carioca e de todo o Brasil.

O BOPE

O Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) do RJ foi criado em 1978, durante a ditadura militar. Os primeiros 30 homens foram treinados pelo exército, que na época combatia os grupos que faziam guerrilha contra o regime. Já era de se esperar que o BOPE usasse a tortura como uma prática cotidiana. Na verdade, o BOPE é um grupo de extermínio da PM do Rio.
Para os marxistas, o Estado Burguês se constitui num bando de homens armados cuja função é gerenciar os negócios da burguesia. A polícia é, portanto, não uma instituição para garantir a segurança dos cidadãos, mas sim para garantir a segurança da classe dominante e seus negócios. Isso significa reprimir as classes exploradas e suas tentativas de organização. Já o crime organizado, em especial o tráfico de drogas, geralmente conta com a participação e ajuda da burguesia – parlamentares e empresários que viabilizam a entrada de drogas no país, financiam a produção e etc. Por isso que o Estado não acaba com o tráfico – que é mais um negócio da burguesia – mas utiliza o suposto combate ao tráfico para reprimir e criminalizar as parcelas mais oprimidas da sociedade. No Brasil estamos falando de pobres, geralmente negros.
O filme em questão coloca muito bem a questão da corrupção da PM (Polícia Militar). Servidores públicos que colocam a vida em risco pra ganhar uma merreca no fim do mês têm possibilidades muito grandes de se corromper. A baixa remuneração é uma das formas que tem o Estado para ter a PM nas mãos. O burguês que financia a campanha do Governador precisa que o PM seja mal remunerado, se corrompa e venda armas para os traficantes continuarem prosperando os negócios do burguês.Porém, o filme, que é baseado no livro “Elite da Tropa” escrito por ex-agentes doBOPE, passa a imagem de que o BOPE é “truculento”, porém honesto. Nada mais falso! Quais condições materiais são diferentes para que um agente do BOPE seja menos propenso à corrupção do que um agente da PM? Os homens do BOPE recebem o mesmo salário dos da PM com apenas uma gratificação de R$500,00 a mais por mês. Cá entre nós, quinhentinhos a mais não são suficientes para evitar a corrupção!

Faca na Caveira

Mesmo para os valores democráticos burgueses é absurdo o uso do símbolo da morte para uma instituição do Estado. Os defensores do BOPE argumentam que o símbolo do batalhão é “anti-morte”, pois a faca que atravessa o crânio representaria a vitória sobre a morte (simbolizada pela caveira). Mas esse argumento não cola. O que fica evidente para qualquer um que vê o símbolo é a caveira e não a faca “vencendo” a caveira. Além do mais, os próprios integrantes do batalhão tratam uns aos outros como “caveiras”. O BOPE é um grupo de extermínio. As músicas que cantam nos treinamentos demonstram isso com uma clareza assustadora: “Homem de Preto o que é que você faz? Eu faço coisas que assustam Satanás!” e “Homem de Preto qual é a sua missão? Entrar pela favela e deixar corpos no chão!”. Mesmo que fossem “honestos” nada justifica a tortura e o extermínio como prática de qualquer instituição.

Caveirão

O filme mostra o BOPE em 1997, dez anos atrás. Hoje o buraco é mais embaixo. O BOPE hoje tem tanques blindados que sobem os morros como verdadeiras máquinas da morte. Esse blindado foi batizado de Caveirão e já foi alvo de matérias do nosso jornal nas quais denunciamos as atrocidades contra as populações pobres realizadas com o uso destes.
Droga de Imprensa

A revista Veja usou o sucesso do filme para “provar” que a sociedade precisa de mais BOPE, mais tortura, mais repressão, mais extermínio nas favelas. Veja encomendou uma pesquisa para o Vox Populi que lhes deu os seguintes resultados:53% julgam o Capitão Nascimento um herói; 72% consideram que os traficantes do filme são tratados como merecem; 85% concordam que a culpa pela existência dos traficantes é dos usuários de drogas! Veja ainda elogia o filme por colocar “os pingos nos is” pois “bandidos são bandidos e não vítimas da questão social”. Logo devem ser exterminados mesmo! Ocorre que no Brasil não está instituída a pena de morte. Veja ainda ousa publicar que não são tomadas as medidas óbvias que se conclui a partir do filme, porque o Brasil “é um país de idéias fora do lugar por causa da afecção ideológica esquerdista”.

As Crianças

O filme cumpriu o papel que os patrocinadores esperavam. Apesar de várias sentenças na narração do Capitão Nascimento que mostram a realidade, toda a montagem induz o espectador “senso comum” a deduzir que a solução é o BOPE. O diretor do filme tenta se defender dizendo que o filme mostra os dois lados, que é imparcial. Mas nada é imparcial. Numa versão pirateada o filme termina com um poema que coloca “não se sabe quem é mocinho e quem é vilão, quem é que vai e quem é que vem na contra-mão” – nessa versão ainda pode se deduzir que o BOPEe os traficantes, ambos fazem a população trabalhadora de vítima. Mas os patrocinadores parecem não ter gostado do poema e na versão final que foi ao cinema não há poema e a última palavra é da 12 estourando a cara do traficante.
E o Capitão Nascimento é mesmo o herói da criançada! Wagner Moura argumenta que se o filme for exibido na Suécia ninguém vai considerar seu personagem um herói. Bom ator, mas se faz de ingênuo. Talvez em outro planeta também não considerassem isso! Ocorre que estamos num determinado contexto histórico e social. As crianças que até 3 meses atrás brincavam de PCC (Primeiro Comando da Capital – facção criminosa de SP) hoje brincam de BOPE, simulam torturas com sacos plásticos na cabeça dos amiguinhos e repetem as falas dos personagens em tom militar: “01 pede pra sair!” e outro responde: “Eu desisto senhor!”.
Há saída

Apesar do filme deixar margem para a conclusão de que não há saída ou de que a saída é mais repressão, sabemos que a saída existe e não é o BOPE. Mesmo que o BOPE acabasse com o tráfico nas 700 favelas do Rio de Janeiro, o desemprego continuaria, a falta de políticas públicas de habitação, educação, saneamento, saúde, lazer, recreação e cultura, continuariam. E portanto, os burgueses que investem no ramo das drogas ilícitas continuariam encontrando terreno fértil para o subemprego do tráfico. E em 6 meses as 700 favelas do Rio estariam tomadas pelos traficantes novamente, que são apenas vítimas deste ramo dos negócios burgueses. Para os marxistas as drogas são instrumentos do imperialismo para controlar e destruir as gerações jovens. E por isso não se trata de culpar os usuários. Os responsáveis são os burgueses! Sob o capitalismo não há saída. É a barbárie mostrada no filme que crescerá cada vez mais. Mas a classe trabalhadora se movimenta, busca se organizar e forjar a saída para uma sociedade sem exploradores, onde a produção de tudo será controlada pelo povo trabalhador e não haverá necessidade de negócios escusos, drogas, violência, armas. A saída é a revolução socialista!
( Caio Dezorzi)

Publicado no jornal “Luta de Classes” edição Nº 07
www.marxismo.org.br

Será que o Brasil perdeu um grande cartunista?

Luiz Botelho

Quando eu era jovem sonhava em me tornar um grande cartunista. No início dos anos 70 ensaiei os primeiros passos nesta arte escrevendo para a seção "Camisa 12" da Revista Placar. Todo o material publicado desta fase eu recortava e guardava numa grande caixa de papelão que, infelizmente, não resistiu à primeira faxina feita pela minha esposa, no início do nosso casamento. Ela pensou que se tratava de velhos recortes sem valor e, aproveitando-se da minha ausência, jogou tudo na lixeira do Condomínio, por considerar aquela caixa um local ideal para futuro ninho de baratas, conforme se justificou na época.

Hoje em dia, vivo brigando com a minha memória que insiste em esquecer quase tudo que leio, escuto ou prometo. Porém, muitas coisas que escrevi naquela época lembro quase que textualmente e aproveito esse espaço para apresentar uma amostra para que vocês mesmo avaliem se eu tinha ou não futuro como cartunista.

Uma das primeiras que saiu publicada foi uma gozação com o campeonato pernambucano. Na semana anterior, um cabra-da-peste daquelas bandas teve a ousadia de criticar o futebol baiano que, apesar de não ser essas maravilhas toda, dava de mil a zero no campeonato deles. Lá era comum os três chamados grandes aplicarem impiedosas goleadas nos demais adversários. Durante aquela semana caiu um temporal em Recife que deixou todos seus estádios impraticáveis ao futebol. Juntei tudo isso e escrevi: "Devido às enchentes de gols, os torcedores pernambucanos rezam aos pés da Santa Cruz, para que o Sport no estado não se resuma a um torneio Náutico". Me senti vingado.

Outra que me lembro foi quando Pelé, após a milésima despedida do futebol, assinou contrato para atuar no Cosmos e foi ensinar os norte-americanos a jogarem bola. Naquele mesmo ano, o Santos fez uma péssima campanha no campeonato paulista e acabou desclassificado ainda na primeira fase. Eu saquei imediatamente qual foi a razão: "O Santos não resistiu às saudades de Pelé. Acaba de ir para o espaço, afim de ver o Negão no Cosmos".

Peguei no pé também de Emerson Fittipaldi quando ele cismou em construir o primeiro carro brasileiro de Fórmula 1. Aliás, de brasileiro mesmo só tinha os pilotos (o outro era seu irmão Wilsinho) e o dinheiro do Copersucar, que patrocinava a empreitada. Primeira temporada, fiasco total. Os carros, quando conseguiam lugar no Grid, terminavam nas últimas colocações, muitas voltas atrás dos líderes – isso quando não quebravam. No ano seguinte, a Revista Placar publicou uma ampla reportagem apresentando as novidades do novo carro brasileiro. Não resisti e escrevi: "De todas as novidades do Fitti II, a mais original foi a troca do conta-giros por um marca-passo". Começa a temporada, GP da Argentina e, incrível, Emerson termina em terceiro, levando ao pódio o carro brasileiro. Segunda prova, GP do Brasil e, inacreditável, Emerson vence a corrida. Não tive outra saída a não ser dar minha mão à palmatória: "Como dizia nosso amigo Gibran, ‘as tartarugas conhecem as estradas melhor do que os coelhos’. Pois é, nosso Emerson, ano passado, era tal qual uma tartaruga, a conhecer todos os autódromos do mundo. Hoje é um coelho". Outro tiro fora do alvo. Terminada a temporada sul-americana, as grandes equipes lançam seus novos carros para a fase européia do campeonato e lá se foram os irmãos Fittipaldi e o dinheiro do Copersucar de volta à rabeira. Bom, meu sonho era ser cartunista e não advinho.

Alguns meses mais tarde, a Revista Placar contratou o cartunista Laerte para cuidar da página de humor. Colaborei por muito tempo com minhas piadas e, creiam, o Laerte gostava muito de mim. Quando ele lançou uma nova seção, "Pontapé Inicial", dirigida a novos cartunistas, peguei lápis, borracha e canetas esferográficas de várias cores e me pus a tentar desenhar as idéias que me vinham aos borbotões. Semana seguinte, abro a revista e lá estava um dos meus cartuns publicado e a seguinte mensagem do Laerte: "Já estava fechando a página quando, como diz a Isaurinha, ‘o carteiro chegou e meu nome gritou com uma carta na mão’. Era do Luiz Botelho, o baiano que não perde tempo. Está com um personagem, o Rufino, aprontando as maiores. Agora, chamar o Botelho de estreante é o mesmo que chamar feijoada de lanchinho. O Botelho escreve para a Placar desde que a revista era contada nos dedos, mas, como a sacada está boa, aí vai. Botelho, te manca aí que tão achando que estamos de caso". O cartum publicado tinha o título "Rufino e o musibol" e era composto por dois quadros. No primeiro, jogadores e torcedores do Bahia faziam a maior festa. Charanga, bandeiras tricolores tremulando, todos caminhando em direção a um vestiário com a identificação: "Grupo dos Vencedores". No segundo, jogadores e torcedores do Vitória chorando copiosamente, bandeiras rubro-negras enroladas, todos se dirigindo a um outro vestiário denominado de "Grupo dos Perdedores". No primeiro quadro Rufino dizia: "Enquanto o Bahia vai em ritmo de samba rumo à classificação..." e completava no segundo "...o Vitória vai em ritmo de choro a caminho da repescagem". Semana seguinte e o cartum publicado era do meu irmão Arival. A mensagem de Laerte dizia: "O estreante da semana é Arival de Morais Filho. Não vou pôr o sobrenome senão vocês vão achar que estou de sacanagem. Vou pôr sim. É Botelho, e daí? No Nordeste só existem duas pessoas realmente gente fina: o Luiz Botelho e a misteriosa Miss Inhame que por sinal não recebi ainda as fotos...".

Porém, um grande desastre aconteceu comigo e mudou completamente meu destino. Consegui a 194ª colocação das 200 vagas oferecidas pelo Curso de Engenharia Civil da Ufba, em 1975. O resultado disso, todos vocês conhecem muito bem.