
Desde a minha primeira e única gravidez , há nove anos, eu desenvolvi uma aversão total a cenas violentas. Não que gostasse delas antes, mas desde então sequer vejo trechos de filmes, o que vem limitando muito a vida de cinéfila. Se não aguento com a representação que dirá com o mundo real. Está cada vez mais dificil fugir, mas bem que eu tento. Ao saber sobre crimes hediondos, chacinas, homicídios procuro não passar do resumo da primeira página do jornal. Sei que não condiz com uma suposta preparação da minha profissão – jornalista – mas minha idade dá a prerrogativa de assumir certas limitações. Tenho uma amiga que diz que às vezes eu pareço viver no desenho infantil O Fantástico Mundo de Bob*.
Devo dizer que essa atitude de coar as coisas boas da realidade, pelo bem e pelo mal, eu venho repassando ao filhote, muitas vezes censurando o que considero violento na TV, nos games, nas brincadeiras. E olha que posso me proclamar uma privilegiada. Em meus 40 anos, nunca fui assaltada. Algo que se pode qualificar como raro. Nem ao menos uma vez nos meus 27 anos de Recife, onde nasci, tampouco nos 13 anos da São Paulo onde vivo agora. Mas, infelizmente, isso perdurou até poucos dias atrás, quando fui assaltada e levaram meu celular. E ainda bem que só foi o aparelho.
Corrigindo: junto com o celular, o assaltante levou embora também um pouco da minha leveza e ingenuidade.
É cruel lembrar o quão rápido a cena se dá. Estava andando na rua, distraída, falando ao celular. Ao desligar e parar para atravessar a rua, senti alguém apertar o meu braço e me virei para falar porque, inocente, achei que se tratava de um possível conhecido. Mas levei apenas alguns segundos para reconhecer a ordem simples, curta e direta, praticamente um sussurro ao pé da orelha. Apenas um clássico “passa o celular”, embalado pelo cano da arma que vi quase colado na minha costela esquerda. Eu nunca tinha visto de perto uma arma antes. Diria que a tremedeira que me acometeu foi instantânea. Sem dizer nada, apenas estendi a mão com o objeto. Mas eu tremia tanto que derrubei o celular bem quando fui entregá-lo. Por sorte, devia-se tratar de um profissional que não ficou nervoso com meu gesto atrapalhado.
Acho que apenas um minuto se passou, menos talvez. E, considerando as corriqueiras manchetes sobre violência urbana, posso afirmar que deu tudo 100% certo, por assim dizer. Ele não levou a minha vida, não me bateu e sequer levou a carteira e os documentos. Mas o choque da vida de verdade foi muito intenso. Nas dezenas de vezes que, involuntariamente, repassei o acontecimento nos dias que se seguiram foi inevitável concluir que a vida pode ser bem mais curta do que sabemos e, ainda, em muitos “se”: e se eu tivesse reagido, se tivesse gritado... e se o cara ficasse nervoso ou bravo porque derrubei o celular... e se não fosse só o celular...e (o pior deles) e se eu estivesse com meu filho...
Não sou neurótica sobre violência, nem pretendo vir a ser depois da traumática experiência. Mas é fato que nas ruas a vida já não vale mais que um mero celular e tudo se passa muito, muito rápido mesmo. E esse enfrentamento da realidade me fez repensar algumas coisas. Dois meses antes, o pai de Felipe conseguira a façanha de ter o celular levado por assaltantes em avenidas de grande movimento em SP - Rebouças e Marginal Pinheiros. Foram duas vezes no curto prazo de dez dias. Na época, apenas comunicamos o fato sem muitos detalhes. Até então, eu considerava que não convinha fazê-lo participar de algo tão adulto.
Logo tive de repensar. O filhinho que crio também vai se expor ao mundo lá fora e talvez já nem seja tão lá fora assim. Pode acontecer até no portão de casa. Mudei de opinião por absoluto pragmatismo. Ao menos, o pouco que podemos fazer de pragmático numa situação dessas: ser objetivo e rápido. Numa suposta cena de assalto ao carro que eu estou dirigindo, e meu filho está no banco de trás, acho que as únicas coisas que me caberiam são: tentar ficar calma, informar cada gesto meu e ser rápida, muito rápida. Ainda assim, precisaria contar com o tempo de destravar a porta de trás, abrir a minha, sair e retirar o meu filho. Então, não apenas eu deveria ser ligeira, mas também ele. E, como acredito piamente que Felipe herdou da mãe a enorme capacidade de distração e dispersão, tremi só de imaginar sua demora.
Qualquer deslize inocente e uma vida pode ser encerrada, sem mais nem menos, num cruzamento qualquer, sem tempo nem de compreender o que está acontecendo.
Quantas já não foram?
Claro que seguir o passo-a-passo que eu criei não nos dá garantia alguma de sobrevivência, mas o creio que o tempo gasto pode fazer diferença entre ficar para contar a história ou não. Acho que a sensação de ter sido assaltada pelo que suponho ser um profissional (objetivo, discreto e rápido) me fez pensar em usar o mesmo recurso estando na perspectiva oposta. Porque nessa hora somente o que importa é estar vivo e, de preferência, com saúde. O trauma psicológico pode ser resolvido depois.

Comecei perguntando se ele sabia o que era um assalto propriamente dito. “É quando alguém rouba alguma coisa da gente”. Mais ou menos. Expliquei a diferença entre roubo e assalto e contei que um cara me abordou na rua, que ele estava armado e me mandou entregar o celular e eu o fiz prontamente. Contei que fiquei com medo, sim, mas que foi bem rápido e logo acabou. E que estava ali, conversando com ele, porque também ocorrem assaltos quando se está no carro, no trânsito. E que se um dia acontecer algo semelhante quando estivermos juntos, ele também precisa agir rápido e tentar ficar calmo. Que se, de repente, eu tivesse de falar "filho, vamos sair do carro agora!!!" seria como um código. Em seguida, eu iria descer rapidamente do carro, abrir a porta de trás e puxá-lo rapidamente. E, como ele já estava sabendo do código, era apenas para sair o mais rápido possível, sem reclamar ou tentar argumentar nada. Que a gente teria de ser bem rápido e só depois conversaria sobre o acontecido.
Expliquei que aquele papo era um pouco esquisito mas que não para ele ficar assustado. Era apenas para não estranhar tanto se eu tivesse que agir assim um dia, porque essas coisas acontecem. Que o carro, a bolsa, eventuais brinquedos que estejam nele não têm a menor importância. O que vale apenas é a vida. O resto depois a gente se vira. Olhando-me atentamente, ele pareceu compreender. Depois continuamos a brincar.
Se vai adiantar, não sei. E, sinceramente, espero nunca ser forçada a testar tal situação. Não foi fácil para mim, ex-moradora incauta do Fantástico Mundo de Bob, trazer uma realidade tão bizarra para o meu filho. Se fiz certo, eu também não sei. Mas me senti um pouco melhor em fazê-lo. Considero muito importante orientar as crianças para criarmos um mundo melhor lá na frente – de respeito às diferenças, de cordialidade, honestidade e de ações conscientes – mas nem tudo depende do que a gente quer. E às vezes a vida é um pouco menos divertida do que deveria ser. Claro que também não podemos ficar pensando sempre nisso, apenas ter algum cuidado, cautela.
Não pretendo começar a fazer drama, terror e deixá-lo paranóico daqui por diante. Nem poderia porque somos, por essência, distraídos. Também não deixarei de louvar a fantasia e o lado mágico de tudo o que nos cerca. É isso, afinal, que alimenta a alma, o coração, e nos dá fôlego novo. Mas creio que, editando um pouco menos o mundo real, talvez eu possa tirar a redoma protetora do pré-adolescente que brevemente terei em casa e enfrentará a rua. Tomara que, mesmo convivendo com a violência, a gente não deixe de sonhar (e buscar) viver em paz.
Publicado no portal de uma amiga, em agosto de 2007, dias depois de um rápido assalto na Av. Faria Lima, uma das principais de São Paulo.
* O Fantástico Mundo de Bob – quem não assistiu ao desenho animado, pode conhecer um pouco no site http://www.infantv.com.br/bobby.htm
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