terça-feira, 4 de dezembro de 2007

ARTIGOS ESCRITOS POR CHICO BUARQUE - 001

Aquarela

Chico Buarque de Hollanda

Semana Cultural do Colégio Santa Cruz – Outubro/1962



Entrando em casa, altas horas da noite, deu com o pai, sentado no sofá.

- Acordado ainda?

O velho lhe parecia estranho, diferente do engenheiro que ele costumava conhecer como pai. Via-se que ensaiara com razoável esforço uma cara fechada, trazia no olhar uma preocupação fingida, e nas olheiras uma ânsia verdadeira de cair na cama. Pobre velho, não sabia mesmo tratar com gente. Para ele, tudo se resumia em dois trissílabos: trabalho e dinheiro. O resto não passava de uma enorme comédia. Mas a velha o obrigara a dar uns conselhinhos ao filho, gênero “homem para homem”.

- Estava te esperando. Senta aí, meu filho, nós precisamos ter uma conversa séria. Bastante satisfeito com o efeito sonoro de sua introdução, o engenheiro se serviu de uma pequena dose de whisky, arquitetando no concreto armado de sua imaginação uma seqüência adequada para o seu sermão.

- Você precisa por uma ordem na sua vida.

- Que é isso velho, já de fogo?

O pai ainda estava na primeira dose, e bastante disposto a levar adiante aquela história, começando pelo assunto escolar. O rapaz dava de ombros. Aquela farsa já se tornava cansativa. Conselho de velho, dizia-se ele, são como japoneses, todos iguais. Agora ele vai dizer que foi, como todos os pais do mundo, o primeiro da classe.

- Escuta aqui, meu filho. Se fui sempre um dos primeiro da escola e pude me formar engenheiro, é porque não desperdiçava meu tempo na rua. Quem são essas mocinhas que tanto telefonam para você?

A conversa foi se estendendo para o lado feminino, como invariavelmente acontece de homem para homem. O pai emprestava dos goles de whisky a eloqüência necessária para enunciar as perguntas que o filho respondia em tom displicente.

Entretanto, já pela terceira dose, os olhos do velho já brilhavam, as perguntas se tornavam insistentes e indiscretas, e a cada resposta correspondia um sorriso mal disfarçado, nos olhos brilhantes e na boca entreaberta. Por outro lado, o filho já começava a apreciar essa nova face do velho, risonho, compreensível e até rejuvenescido.

- E essa tal de Márcia, que tipo é?

- A Márcia? Não sei bem, e um tipinho meigo, delicado...

- Ah, então deve ser como uma antiga namorada minha, a Ivone. Por onde será que ela anda? Ah, adoro tipinhos meigos!

A cada gole do seu scotch, o homem adorava um tipo diferente. As meigas, as frágeis, as simples, as inocentes, as sofisticadas, as alegres, as românticas, todas ocupavam um lugarzinho em seu coração doente de 65 anos. Preferia as louras e as morenas, sem falar nas ruivas e em outras cores que ocasionalmente aparecerem por aí. O rapaz se divertia com as lembranças do pai.

Porém, de mulher em mulher, muitos drinques se foram, e o álcool subia a cabeça do pai. Acompanhando essa ascensão do Mapa Mundi, não tardou a vez das nórdicas.

- Tive também uma amiguinha sueca, Ingrid, loura, alta, ah, aquela sim. Se sua mãe soubesse...

E o velho se largava em gordas gargalhadas, parecendo prestes a estourar a qualquer momento. Esfregava as mãos, arregalava os olhos, deliciava-se com a juventude distante. Chegara ao ponto em que a bebida torna qualquer um desagradável. Ia falando sozinho, apenas cutucava o filho cada vez mais aborrecido pelo papel ridículo daquele, degradante, como a todo homem ao natural, sem escrúpulos nem artifícios.

- Conhece aquela piada...

O rapaz já conhecia há muito tempo. Aliás, não conhecia piada mais suja. Mas era obrigado a respeitar o pai e sua anedota, por serem ambos mais velhos do que ele. E assim se sucederam piadas e piadas, numa fantástica coleção que faria inveja a qualquer produtor de filme francês.

2 comentários:

Anônimo disse...

Enfim, algo sério nesse blog.

Mariana Mantu disse...

E de quebra, lindo!