segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O encontro esperado com Chico Buarque


Eric Nepomuceno
Estado de São Paulo - 1997


Os dois conversaram sobre música, futebol e caipirinha num restaurante carioca

A esta altura, o Brasil instalou-se de vez na lista de países que aprenderam a reconhecer no chileno Antonio Skármeta um autor de êxito. Sua rápida passagem de três dias pelo Rio de Janeiro acabou de eliminar qualquer dúvida que o próprio Skármeta eventualmente pudesse ter a esse respeito. O lançamento de seu novo livro - os contos de Não Foi Nada - atraiu dezenas de leitores nas duas sessões de autógrafos realizadas na Bienal do Livro, sábado e domingo. E o romance O Carteiro e o Poeta já ultrapassou há muito, e com folga, a marca de vendas que dá direito a um autor ser considerado um best seller no Brasil.

Nesta sua segunda passagem pelo Rio no último ano e meio, Skármeta veio com Nora, sua mulher alemã de cabelos louríssimos e olhos azuis. Os dois puderam realizar uma antiga aspiração: conhecer Chico Buarque. Uns poucos telefonemas envolvendo um amigo dos dois cruzaram a cordilheira nas vésperas da viagem de Skármeta, e na noite de sábado, o encontro enfim aconteceu. Chico havia abandonado seu refúgio de Petrópolis, onde trata de compor as músicas para seu novo disco, e às 20h30 em ponto chegou ao restaurante Arlecchino, em Ipanema. Skármeta e a mulher chegaram dez minutos depois. Foi como um encontro de velhos conhecidos. E todo o êxito de O Carteiro e o Poeta não impediu que o escritor chileno se confessasse, de saída, um admirador ardoroso.

“Eu estava no exílio, na Alemanha, e um dos pontos que me aproximou de Nora foi o fato de ela ter quase todos os seus discos”, contou rindo a Chico Buarque. “Aliás, acho que agora já posso confessar que, além de meu interesse por ela, havia outro muito forte: sua coleção de seus discos...”

Ao contrário do que poderia esperar num encontro desse tipo, quase não falamos de literatura: a conversa girou ao redor da estranha mania que os brasileiros têm, de tomar caipirinha feita com vodca (“Não entendo isso”, protestou Nora, e Skármeta ameaçou um discurso de defesa radical da cachaça). Depois, falou-se de futebol e literatura: Skármeta queria saber se existe uma literatura forte no Brasil, tendo o futebol como tema. Espantou-se com as nossas respostas: não conseguimos recordar nada além de peças soltas, algumas de altíssima qualidade. Foram mencionados poemas de João Cabral de Melo Neto e Vinícius de Morais, e contos de Sérgio Sant’Anna, Rubem Fonseca, João Antônio e Fernando Sabino. Assim como quem pisa terreno perigoso, Skármeta arriscou:

- Eu sei, Chico, que você gosta de futebol. E qual o time do qual você mais gosta?

A resposta veio envolta num sorriso de indisfarçável orgulho:

- Eu tenho um time de futebol, o Politheama. Mas também torço pelo Fluminense.

A curiosidade do chileno concentrou-se em alguns aspectos da relação entre escritores e futebol. Por que será que ao contrário do que ocorre entre os músicos há tão poucos escritores que jogam futebol? O primeiro exemplo saltou em uníssono: Albert Camus. Chico vetou, enfático:

- Ele não era jogador de futebol: era goleiro. E goleiro não é jogador de futebol. Aqui no Brasil, quando a garotada joga, sobra para o gol quem é perna-de-pau. Aliás, até as meninas jogam no gol.

- Chico, você joga em que posição?

- Todas. Menos a de goleiro.

Skármeta bem que tentou defender os goleiros. Foi fulminado por uma pergunta marota:

- E você, joga em que posição?

A resposta veio cabisbaixa:

- Goleiro.

Chico arrematou, cheio de orgulho, com um silêncio piedoso.

A polêmica parou por aí. Até o fim da noitada, Skármeta não tornou a mencionar o tema. Teve tempo, em todo caso, de conversar sobre como era a censura no Brasil, sobre o método de escrita e de perguntar muito pelo processo político brasileiro. Falou-se de vinhos, de viagens, de comidas prediletas. A convite de Chico Buarque, fomos todos ao show de uma eletrizante Elba Ramalho, no Canecão. Na saída, Skármeta quis saber: “Ninguém desliga essa moça da tomada?”

Já na madrugada, no terraço lá de casa, vendo o contorno grave do Corcovado e a luz iluminando o Cristo Redentor, a conversa continuou, como entre velhos conhecidos. E aí foi a vez de Chico Buarque confessar, um tanto encabulado:

- Nos últimos 53 anos, não estive no Chile nenhuma vez.

Skármeta, é claro, entendeu. O convite veio de bate pronto. Só falta marcar a data.

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