sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Por ser amor, invade e fim *


Que Felipe um dia perdoe minha indiscrição de mãe, mas contar o causo da sua primeira paixão é irresistível.

Ele tem apenas sete anos e há meses dá bandeira que “gosta” de uma amiguinha da classe. Mas, reservado, não deixa que se fale muito sobre o tema. Vez por outra eu arrisco indagar “quem é a menina mais bonita da sala”, mas ouço um rápido e indignado “não vou falar” de um rostinho afogueado. E costumo respeitar sua privacidade, salvo um e outro deslize, como este agora.


Confesso meu constante estranhamento às rápidas mudanças que acometem Felipe (que hão de continuar), simbolizada no momento por um enorme sorriso de pouquíssimos dentes. Mas essa cena de amor foi ímpar para uma mãe de primeira viagem. Há alguns meses vinha percebendo o nome de uma garota, em especial, nas nossas longas prosas sobre os amigos da escola. Não demorou muito e logo ele me perguntou se poderíamos convidá-la para brincar aqui em casa. Confirmada a visita para o final de semana seguinte, deu-se o que chamo de surto apaixonado no moleque. E pelo resto da semana só se ouvia falar na garota ou no domingo que parecia nunca chegar.

Nada que vi e ouvi por esses dias, no entanto, chegou perto do que presenciei no dia da visita, ou melhor, no DIA DA VISITA. A ansiedade era tanta que, mal acordou, ele já estava na janela da sala me perguntando as horas. “Ela só vem às 11h30, filho, e ainda são 9h”. O quarto parecia ter perdido a graça e mesmo com a TV ligada, a cada 30 segundos, ele olhava desolado pela janela do quarto andar. Quanto mais eu o assistia, menos acreditava na emoção que ele estava sentindo daquela idade.

Momentos de tensão às 11h30. “Ninguém” na portaria do prédio, vigiada com olhos de águia da nossa janela. E as suas temerosas dúvidas foram reveladas, em trocentas perguntas:

  • Será que ela vem mesmo?

  • Vai demorar muito ainda?

  • Quando ela vai chegar?

  • O que será que aconteceu?


Tive de disfarçar o sorriso ao comparar a cena do meu fiho com o que acontece com qualquer marmanjo adulto, quando se vê enredado pela paixão, e marca um primeiro encontro. Inevitável a comparação. E lembrei de um livro que nos tempos de universidade morava na minha cabeceira para frequentes consultas – Fragmentos de um Discurso Amoroso (Roland Barthes) - que descreve diversas situações a que se submete inconscientemente o apaixonado, um ser solitário e atormentado em sua própria angústia.

Para amenizar a agonia do meu amado filho, lá fui eu consultar a mãe da menina: atraso de uma hora. Ao contar, vi um par de olhos arregalados e deseperados, um rosto ardendo em brasa. Uma aflição medonha, como diria o poeta.Em um dos trechos do livro, o autor descreve essa agonia da espera, a insegurança e a sensação de que o tempo pára junto com a gente para esperar também.

Conversei com Felipe e aproveitei o momento para reforçar o discurso da paciência, explicar que de nada adiantava ficar tão ansioso porque era preciso esperar. Blábláblá. Mas, ao notar os olhos lacrimenjantes, o coração disparado, a mão completamente suada e o provável torcicolo de tanto olhar para a portaria la embaixo, resolvi abandonar o meu discurso inútil e simplesmente abraçá-lo e tentar apenas distraí-lo com outro assunto de seu grande interesse: o mundo dos desenhos animados. Ganhei bons minutos e um respirar menos agonizante.


Eis que, enfim, ela chegou! E nada mais pareceu ter importância.


Posso dizer que é verdadeiramente inconfundível o olhar do apaixonado, mesmo que se tenha apenas sete anos. Desde que a garota entrou no apartamento, o meu filho parecia outro, um ser meio letárgico, abduzido, enfeitiçado, hipnotizado, encantado: apaixonado, enfim. E eu, atordoada, não cansava de me perguntar: como pode isso?! Ele é só uma criança!

Passei a relembrar e cantarolar baixinho algumas canções, que considero ter o dom de traduzir um e outro desses sentimentos perturbadores em nossas almas apaixonadas.


Pétala (Djavan)

"Por ser exato o amor não cabe em si.
Por ser encantado, o amor revela-se.
Por ser amor, invade e fim."


Cupido (Claudio Lins), cantada por Maria Rita

Foi só por um segundo
Todo o tempo do mundo
E o mundo todo se perdeu”


Sonho real (Lô Borges e Ronaldo Bastos)

À primeira vista
A paixão não tem defesa
Tem de ser um grande artista
Pra querer se segurar
Faz tremer a perna
Faz a bela virar fera
Quando alguém que a gente espera
Quer se chegar”


Voltando ao rebento, na tarde de observação que se seguiu, tudo girava em torno das preferências da garota. Desde mostrar TODOS os brinquedos do quarto, trocar de brincadeiras ao menor sinal de desinteresse da moça, oferecer balas e bombons todo o tempo, assistir de bom grado a um desenho que antes considerava sem graça ou simplesmente se deixar flagrar várias vezes com o olhar perdido na menina. Ele nada falou à garota e nem devia ter consciência da própria emoção, claro, mas ela estava ali, bem visível.

Não sei se é comum passar por isso na condição de pais, mas achei tudo muito estranho. Projetei a cena num futuro não muito distante e me vi acompanhando de longe o sofrimento adolescente e adulto das paixões mal resolvidas que surgirão na vida meu filho. Mais tarde, resignada no papel de espectadora, relaxei. E passei a me divertir observando como se comporta um legítimo apaixonado na sua essência. Próximo ao final da visita, novamente reconheci o jeito nervoso e arfante que, embora disfarçado, não continha a ansiedade em meu filho. O encanto da abóbora estava por acabar e era necessário voltar ao mundo real. Suspiros. Um olhar meio perdido, meio triste, meio cansado de quem antevê o breve futuro. Tudo faz parte.

E mal a menina saiu, vi meu filho adormecer placidamente no sofá da sala, ou melhor seria desmaiar? A emoção fora tanta naquela tarde que ele apagou minutos depois que a mocinha saiu. No dia seguinte, mãe indiscreta e cínica, saquei algumas perguntas do tipo “o que você achou do dia de ontem, filho?” Respondido com um curtíssimo “foi bom”. Teimosa e insistente, continuei:“foi bom como? Que parte do dia você gostou mais? Ela agora é sua melhor amiga? E o meu discreto filho, rapidamente silenciou-me, dizendo: “mãe, você é muito curiosa! Eu não vou falar sobre isso!” E logo tratou de esconder a timidez sob o travesseiro. Não o amolei mais (naquele dia). Eram merecidos o devido respeito e a privacidade.

Só espero que - bem mais tarde, por muito tempo - ele lembre desse dia memorável da sua infância. Para mim, certamente, foi. Abençoados os que têm histórias de amor para viver e contar.

* escrito originalmente no final de 2006

9 comentários:

Luiz Botelho disse...

Andrea, que lindo texto! Ao longo da deliciosa leitura fui arremessado várias vezes ao passado em recordações, a muito escondidas no meu coração, das minhas incontáveis paixões platônicas, muitas delas que só agora entendi plenamente ao terminar de lê sua abençoada história de amor.

Anônimo disse...

lindo, andrea.

Andrea disse...

Luiz e Cristina,
Foi mesmo um dia especial, de muita contemplação. Eu custava a acreditar que apenas aos sete anos - acho que as gerações hj são mais precoces mesmo - ele já tivesse essas reações que eu só tive na adolescência, quase adulta.

Mas estranho mesmo é ver isso também na condição de mãe. Dá uma aflição ver o filho sofrer e não poder resolver, ne? E ter de entender que a vida é deles.

Anônimo disse...

o texto é lindo, quão lindo é o motivo.

Fulano Sicrano disse...

Andrea, que emoção! Se eu te falar que fiquei com lágrimas nos olhos, acredita em mim? Linda é a vida.

Andrea disse...

Fulano,
Eu, que de tempos em tempos praticamente moro no seu blog de tanto ouvir musica, estou surpresa e feliz com sua visita ao nosso.

A vida é linda, sim. Mas viver é muito perigoso, como bem disse Guimarães Rosa.

Sabe que, propositalmente, não contei uma parte triste dessa paixão? A amiguinha dele era namorada (claro, namoro de escolinha)de nada menos que o melhor amigo dele. Talvez por isso Felipe nem admitia seu interese por ela. Ele simplesmente não podia. Era engraçado e desesperador. Ele ficava como "mosca de padaria" cercando ela sempre que podia, mas sempre tentando se controlar. E, ela azia charme.Em outra vez que veio aqui, ela pegou nas duas mãos dele numa brincadeira e ele ficou automaticamente travado, duro, e olhou rapidamente para mim, que fingi não ver...juro que pensei que ele ia desfalecer ali mesmo. Tive de sair da sala para nao rir.

No começo eu achava essa paixonite linda, mas no final já tava preocupada pq ninguém merece que o primeiro amor seja a namorada do melhor amigo! E tinha medo que ele ficasse traumatizado. Mas a vantagem de ser criança é que ainda temos a vida toda pela frente. Muitas outras virão.

bj

Andrea disse...

Luiz, esqueci de comentar sobre as minhas paixões adolescentes platônicas. Tb tenho algumas, como o vizinho que, mais velho, nem me notava. Tudo bem que eu me escondia quando ele passava, o que dificultava qualquer encontro. :) Mas são hitórias deliciosas de lembrar.

Luiz Botelho disse...

Legal Andrea! Amor platônico é assim mesmo. Mais importante do que a experiência passada pelo seu filho, foi você nos relatar de uma forma que só uma mãe amorosa e atenta seria capaz de fazer, trazendo emoções que na verdade todos nós vivenciamos ou vimos nossos filhos vivenciarem, comprovadas pelas quantidades de comentários postados. Nem vou te convessar que chorei porque sou um besta mesmo e choro por qualquer coisa.

Andrea disse...

Sou uma mãe-coruja assumida, Luiz.
E chorona tb.
Aliás, acho que só não chorei nesse dia pq custei a acreditar que aquilo tudo era real por ele ter apenas sete anos. Aprendi ali que não existe uma idade mínima para se apaixonar. Ea respeitá-lo. Ele realmente já estava sofrendo as mesmas agruras que vai repetir esporadicamente na vida adulta. Muito maluco, esquisito, mas bom.