sábado, 16 de fevereiro de 2008

As palavras e o preconceito


Jorge Portugal

Quem produz um texto, sobretudo uma redação, que requer equilíbrio de análise ou justeza na argumentação, tem que utilizar as palavras com a precisão vocabular necessária à compreensão e o comedimento exigido a um redator de mente aberta. Externar preconceitos ou ódios particulares com a desculpa de defender um ponto de vista tornará o seu texto uma seqüência de idéias insustentáveis, vulnerabilizadas por emoções desmedidas que, no fim, revelarão a pequenez do autor.

O preconceito na linguagem pode expressar-se em frases feitas, ou mesmo no uso de uma, aparentemente, “inocente” palavra. Há cerca de um ano, um aluno, em redação feita em sala sobre o tema “O brasileiro e sua relação com o trabalho”, escreveu uma seqüência de assertivas que, certamente, herdou de geração anterior e, sem capacidade crítica suficiente, só fez ratificar visão preconceituosa acerca do povo a que pertence. “O brasileiro é preguiçoso”; “o país é rico, mas o povo é pobre porque não gosta de trabalhar”; “descendentes de índios indolentes e portugueses degredados, nosso povo não tem criatividade e iniciativa”. E por aí foi.

Há algumas semanas, tivemos dois casos de preconceito ostensivo na vida nacional. Um, fartamente noticiado, foi motivo de artigos apaixonados, de polêmica garantida nos jornais e TV. O outro passou despercebido, alertando apenas os que lêem nas entrelinhas, e gostam de, vez por outra, colocar a linguagem “no divã”.

No primeiro episódio, o jogador argentino Desábato chamou o brasileiro Grafite de “negro de m...”, “macaco” e outros designativos que revelam a extensão de um racismo abjeto que deve ser punido da maneira como de fato o foi: a cadeia. A violência verbal não deixou dúvida da intenção do portenho, mesmo se se levar em conta o calor do momento, a ebulição de um jogo de futebol. Não há desculpas para preconceito.

No segundo episódio, a manchete do jornal A Folha de São Paulo noticiava a ida do presidente Lula e comitiva ao funeral do papa e “abria” em letras garrafais a seguinte sentença: Lula convida ATÉ mãe-de-santo para o enterro do papa. Ora, convidados foram também um rabino, dois cardeais, um pastor protestante, além de dois ex-presidentes; mas a palavra “até” só foi usada com referência à mãe-de-santo. Dias depois, a colunista Danuza Leão, em artigo em que desancava Lula por tamanha comitiva, repetia o ATÉ para referir-se à Mãe Nitinha. “Até” rima com candomblé. E o candomblé, todos sabem, é a mais forte expressão da religiosidade negra no Brasil. Por que não ATÉ um rabino? Ou... ATÉ um pastor? A linguagem é o reduto mais profundo do preconceito. Onde o inconsciente se revela pelas frestas do pensamento. Pensem nisso.

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