quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

ARTIGOS ESCRITOS SOBRE CHICO BUARQUE - 002

Jornal do Brasil - 26/Junho/1971

Clarice Lispector

Xico Buark me visita


Essa grafia. Xico Buark, foi inventada por Millôr Fernandes, numa noite no Antonio’s. Gostei como quando eu brincava com palavras em criança. Quanto ao Chico, apenas sorriu um sorriso duplo : um por achar engraçado, outro mecânico e tristonho de quem foi aniquilado pela fama. Se Xico Buark não combina com a figura pura e um pouco melancólica de Chico, combina com a qualidade que ele tem de deixar os outros o chamarem e ele vir, com a capacidade que tem de sorrir conservando muitas vezes os olhos verdes abertos e sem riso. Não é um garoto, mas se existisse no reino animal um bicho pensativo e belo e eternamente jovem que se chamasse garoto, Francisco Buarque de Holanda seria dessa raça montanhosa.

Gostei tanto de Chico que o convidei para a minha casa. Com simplicidade ele aceitou.

Apareceu perto das quatro da tarde : naquele tempo, às cinco horas tinha uma lição de música com Vilma Graça, e havia um ano que estava estudando Teoria Musical, para depois estudar piano.

Quantos momentos decisivos na sua vida, é muito moço para saber se eram de fato decisivos esses momentos, se no final das contas contaram ou não. Nasceu com a estrela na testa : tudo lhe correu fácil e natural como um riacho de roça. Para ele, criar não é muito laborioso. Às vezes está procurando criar alguma coisa e dorme pensando nisso, acorda pensando nisso - e nada. Em geral cansa e desiste. No outro dia a coisa estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita, nascida naquele momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior inconsciente e aparentemente negativo.

O problema lhe interessa: fez-me várias perguntas sobre meu modo de trabalhar. Eu lhe disse: “Você, apesar de rapaz que veio de cidade grande e de uma família erudita, dá impressão de que se deslumbrou ao mesmo tempo em que deslumbra os outros com sua fala particular: já se habituou ao sucesso? Dá impressão de que você se deslumbrou com as próprias capacidades, entrou numa roda-viva e ainda não pôs os pés no chão”.

Chico acha que tem cara de bobo porque suas reações são muito lentas, mas que no fundo é um vivo. Só que pôr os pés no chão no sentido prático o atrapalha um pouco. Acha que o sucesso faz parte dessas coisas exteriores que não contribuem em nada para ele:

A pessoa tem sua vaidade, alegra-se, mas isso não é importante. Importante é aquele sofrimento de quem procura buscar e achar. Hoje, disse-me, acordei com um sofrimento de vazio danado porque ontem terminei um trabalho.

Falamos do processo de criar de Vila-Lobos e ele contou uma frase dele dita a Tom Jobim: Vila-Lobos estava um dia trabalhando em sua casa e havia uma balbúrdia danada em volta. O Tom perguntou: “Como é, maestro, isso não atrapalha?” Ele respondeu: “O ouvido de fora não tem nada a ver com o ouvido de dentro.” E isso Chico invejava. Também gostaria de não ter prazo para entrega das músicas, e de não fazer sucesso: ele é interrompido nas ruas e nas ruas mesmo é obrigado a dar autógrafos.

Chico tem um ar de bom rapaz , esses que todas as mães com filhas casadoiras gostariam de ter como genro. Esses ar de bom rapaz vem da bondade misturada com bom humor, melancolia e honestidade. Tem o ar crédulo, mas diz que não é, é apenas muito preguiçoso.

Claro que gostou quando o maestro Isaac Karabtchevsky dirigiu a banda no Teatro Municipal, mas o que lhe interessa mesmo é criar. Desde pequeno faz versinhos. Pedi-lhe que fizesse assim de improviso um versinho e que, para pô-lo à vontade, eu esperaria na copa. Daí minutos Chico chamou, rindo: Como Clarice pedisse / Um versinho que eu não disse / Me dei mal / Ficou lá dentro esperando / Mas deixou meu olho olhando / Com cara de Juízo Final.

Perguntei-lhe se já experimentara sentir-se em solidão ou se sua vida tinha sempre esse brilho justificável. Eu aconselhei que de vez em quando ficasse sozinho, senão seria submergido, pois até o amor excessivo dos outros podia submergir uma pessoa. Ele concordou e disse que sempre que podia dava suas retiradas.

Logo que entrou para Arquitetura, quando começou a trocar a régua pelo violão, a coisa parecia vagabundagem mas depois a família se conformou.

Estava em fase de procura e no dia anterior acabara um trabalho que era só de música, que exigia prazo. Mas para uma canção nova estava sempre disponível. A coisa mais importante para Chico é trabalho e amor, e, como indivíduo, quer exatamente ter a liberdade para trabalhar e amar. De brincadeira perguntei-lhe o que era amor. “Não sei definir”, disse-me, “e você?” “Nem eu”, respondi.

3 comentários:

" Sobre Todas as Coisas" disse...

eu menos ainda....rs

Luiz,
delícia essa conversa de Clarice.
Tão bom quanto
um quindim baiano

Valeu mermão !!!

Romyna Lanza disse...

Descobri porque Luiz gosta tanto do Chico. T�m algo em comum. J� dizia Clarice sobre Chiquinho: "� apenas muito pregui�oso". Digo sobre Luiz: "� apenas muuuuuuuuuuito, mas muuuuuuuuuito pregui�oso". Hehehe!

Andrea disse...

Como diria o Antonio Maria, gosto de quem gosta desse céu, desse mar... dessa gente toda. Adoro Clarice. Muito legal, mesmo. E cda vez nosso blog fica mais interessante.